É para mim desde logo um enorme prazer poder apresentar o primeiro livro do Rui Goulart, um jornalista da minha geração que só por mero acaso não se cruzou mais cedo comigo em Lisboa – por onde estudámos ao mesmo tempo – ou no Açoriano Oriental, onde comecei a trabalhar, logo após a saída dele…
‘Identidade do Olhar’, como ele próprio afirma, é um manifesto de ‘emoção’ por oposição à ‘razão’ que domina o nosso dia-a-dia. É para mim um enorme gosto poder assistir com o Rui Goulart, não só ao surgimento de uma nova geração de escritores açorianos, mas sobretudo e neste caso concreto ao regresso do ‘casamento’ entre literatura e jornalismo, que tão bons exemplos deu no passado e que, com altos e baixos, tem resultado ultimamente mais em divórcio ou quando muito em união de facto, com muitos jornalistas a publicarem livros que na sua grande maioria acabam emprateleirados na literatura de cor-de-rosa ou light, numa espécie de segunda divisão literária, ganhando leitores na mesma medida em que perdem o respeito do mundo literário e académico.
Como jornalista, tal como o Rui, tão presos que estamos à realidade no nosso dia-a-dia – contra mim falo, mas cada vez mais às vezes não apetece ouvir notícias… – imagino a agradável sensação de fuga que para ele deve ser abrir a porta à noite para um mundo novo, onde somos nós que construímos a nossa própria realidade, em vez de sermos por ela consumidos.
A poesia é aqui um género privilegiado para esta ‘fuga’. Por um lado desafia-nos mais do que qualquer outro texto escrito que conheçamos. Por outro lado, não nos obriga ao compromisso de uma leitura continuada e cúmplice como um romance. Um livro de poesia pode ser lido de uma vez só e repetido quantas vezes quisermos, mas pode também ser lido de forma aleatória, poema a poema, sem prazo de validade…
E que prazer é, por vezes, podermos parar durante cinco minutos da nossa vida para simplesmente reflectirmos sobre o desafio das palavras e dos seus sentidos. Podermos numa vida de branco e preto e de muitos tons de cinzento, de repente abrir toda uma paleta colorida. É este o efeito mágico que a poesia pode ter nas nossas vidas. E às vezes não custa nada, um poema lê-se e relê-se em cinco minutos. Mas pode-nos fazer ganhar um dia.
‘Identidade do Olhar’ é pensado para isso mesmo, sem um fio condutor, orientado para o quão fragmentadas e cada vez mais diversificadas estão as nossas vidas hoje em dia. O livro tem poemas mais abstractos, onde a força da palavra predomina e poemas mais concretos, onde sobressai o sentido global do texto. Comecei por gostar – como a maior parte das pessoas, julgo – dos poemas mais tradicionais, dos que mais facilmente entram na cabeça ou no ouvido, mas terminei o livro na dúvida, ajudado pela sonoridade dos poemas mais abstractos, sonoridade essa conferida pelo bom domínio da Língua – coisa cada vez menos vulgar – que o Rui demonstra.
O uso da fotografia na literatura não é novo, mas é algo que aprecio particularmente. Normalmente nos livros de fotografia e poesia, o poema surge como uma legenda, subalternizado à fotografia. Mas não é isso, que acontece neste livro, onde se não são os poemas que falam mais alto neste diálogo, pelos menos fazem o seu caminho com a fotografia lado a lado…
E também aqui o Rui é muito variado na estética fotográfica, dos instantâneos de natureza, à composição de cenários, passando pelo uso das imagens ampliadas – os macros – as que eu mais aprecio, pelo seu carácter de composição quase abstracta e por serem como a ‘roupa’ dos poemas, que os embeleza e engrandece, ou como afirma o próprio Rui Goulart, as imagens que mais se aproximam da ‘fotografia por palavras’.
Gostei muito neste livro de alguns poemas. Não os conseguindo recitar, limito-me a citar pelo menos alguns versos de, por exemplo… O poema “A Ilusão” (Bate o chicote do castigo – que belo começo de poema!); o poema “Cruzar” (com o seu diálogo interessante entre Cruzar e Esquecer); o poema “Existe!” (Sem infernos de duas faces/ Sem trampolins no caminho); o poema “Memória” (E o nada? Acreditava!); o poema “Um Mundo” (Olham-se ao longe, Não comigo!) e o poema “Untitled” (Sem tempo para o tempo / Uma missa obedecida / Um segredo apetecido).
Falava eu há pouco da legitimação do mundo literário, para concluir agora que o Rui Goulart começou por se legitimar a si próprio e ao seu trabalho num meio já tão conhecido de todos, mas também ainda tão pouco explorado nas suas melhores virtudes. Estou a falar da rede social do Facebook. Foi lá que este livro nasceu. Sem preconceitos de formato, ser bem sucedido no mundo virtual do Facebook é tão difícil quanto ser bem sucedido no mundo real, ‘cá fora’. Todos podemos ali publicar o que bem entendermos, mas são muito poucos os que obtêm o retorno desejado pelas melhores razões. Tal como ‘cá fora’… Há uma ‘química’ com os leitores que é preciso estabelecer no Facebook, tal como no mundo real, que os fideliza, que os faz querer ir até ao fim e ler mais.
O Rui Goulart conseguiu estabelecer essa química. Eu, como muitos dos presentes nesta sala, sou amigo dele no Facebook e testemunho a popularidade, no bom sentido da palavra, que ele tem na rede social. Que mais do que uma forma menor de entrar no meio literário, é hoje em dia uma forma tão válida como qualquer outra. Mas sem as barreiras editoriais ou da protecção da crítica literária. Talvez esteja aí o maior receio de muitos escritores… Que, pelo contrário, foi o grande impulso do Rui Goulart para a publicação desta ‘Indentidade do Olhar”, a quem desejo agora na sua versão tradicional em papel, o mesmo ou ainda maior sucesso que a sua primeira edição virtual no Facebook.
Porque nada ainda se compara ao ‘peso’ de uma palavra impressa em papel.
Rui Jorge Cabral
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NOTA: Apresentação de ‘Identidade do Olhar’, de Rui Goulart, edição da Publiçor. Hotel Marina Atlântico, Ponta Delgada,
11 de Outubro.