Há qualquer coisa de faulkneriano neste romance: sangue, suor e loucura, a criação das nações não podia acontecer de outra maneira, os guerreiros exigindo sempre a contrapartida para o bem-estar dos seus, a “virtude” e existência colectivas uma noção que só poderá dar certo a partir de e em nome do indivíduo, do “privado”. Em Portugal Karl Marx teria dado em doido, Freud e Kafka perderam a sua oportunidade. Mas é precisamente esse o nosso “esplendor” ibérico. Mil Anos Menos Cinquenta está recheado de passagens lapidares, antológicas para nós.
Amontoado de tolos, lamentava-se Filipa. Mas, que jeito, era o caminho. Perdida a Coroa, cultivava-se a memória. Quando o trono retornasse às boas mãos lusitanas, talvez pudesse a família voltar a viver como antes. Esperta, astuta, omissa, pois agora oportunismo era só ser português.
Da mística e triunfal espada de Afonso Henriques em Ourique à entrada violenta dos Bandeirantes sertão brasileiro adentro. Duas empresas mais ou menos “privadas” que resultariam num bem maior: a criação de duas nações, um bem “público” ou “colectivo”, a invenção globalmente identitária de outros povos. Quando visito São Paulo, quer grandes ou pequenas cidades no seu interior imenso, há uma característica que me chama de imediato a atenção: o fechamento quase completo das moradias, grandes ou pequenas, ricas ou pobres. Fechados a sete chaves, os seus portões de ferro só se abrem para convidados ou outros conhecidos, a vista para o interior barrada por altos paredões. O antropólogo Roberto DaMatta já abordou esta realidade no seu livro O que faz o brasil Brasil? A divisão entre o “privado” e o “público” seguramente delineado, a família, o clã, protegido até ao possível de olhos alheios ou possivelmente ameaçadores. Dirão que da “Coimbra” ruralizada e muito, muito antiga, reinventada por Angela Dutra de Menezes em Mil Anos Menos Cinquenta, ao Brasil contemporâneo vai um grande espaço e tempo. Mas acontece que quase todos os pensadores brasileiros atribuem este fenómeno residencial e psicológico à estreita divisão entre o “nós e os outros”, entre a família e a sociedade, esta estranha, fria, oportunista e porventura cruel, uma coexistência tensa e pouco desejada. Falar de política no Brasil é falar nos “outros”, dos que se apoderam ou usurpam o Poder, não interessa se historicamente por vias de espingardas ou pelas urnas dos nossos tempos abertas a todos os cidadãos. Ninguém confia em ninguém, os homens sérios públicos são quase elevados à santidade cívica, seus nomes crivados nas ruas. Depois do trabalho, o churrasco em família, a celebração de se estar vivo e em paz entre os nossos. A “sociedade” que se mantenha como muito bem quiser e entender; evitar a todo o custo o contacto com o “estado”, com as “autoridades”, não confiar seja em que for fora do círculo mais íntimo, sanguíneo. “Portugal” à vista. Poderemos não exagerar nos portões, mas o resto é demasiado familiar:
Como se fosse fácil—diz a narradora na última página de Mil Anos Menos Cinquenta—Urraca, 38ª geração de Ab’ul e de Urraca, decidiu fazer-se ao mar, atravessar o oceano, levar seu sangue ao Brasil. O sangue e os olhos mouros. Também os cabelos vermelhos e os antigos defeitos—tentando ou não, o final seria o mesmo; ao menos se distraía”.
Mil Anos Menos Cinquenta é um romance brasileiro e português. Espelho meu, povo maravilhoso, sábio–pelo menos na ficção.
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Angela Dutra de Menezes, Mil Anos Menos Cinquenta, Civilização Editora, Porto, 2008.
Dados Biográficos da escritora Angela Dutra de Menezes:
Natural do Rio de janeiro onde nasceu em 1946.
Jornalista. Formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, estudou também na Universidade da República do Panamá e Universidade da Georgia (EUA).
Exerceu a carreira de Jornalista escrevendo no Segundo Caderno do Jornal O Globo e encerrando suas atividades na revista Veja,da editora Abril. Abandona a profissão para se dedicar a literatura. Perde as redações uma grande jornalista e pesquisadora ganha a literatura brasileira uma grande escritora,apaixonada pelo ofício de escrever.
“Mil anos menos cinquenta”,seu romance de estréia, publicado em 1995 e que apresentou a saga de uma família em dez séculos de civilização (de Portugal à vinda para o Brasil), recebeu o Prêmio de Autor Revelação da Bienal do Livro de 1995,Era apenas o começo de uma carreira promissora. Outros romances e contos seguiriam e todos recebendo indicações de prêmios e o aplauso inconteste de seus leitores no Brasil e no além mar. E, não só…
visite o Blog de Angela Dutra de Menezes: www.dutrademenezes.blogspot.com
Fonte e imagem da escritora: http://sobrecapa.wordpress.com/autores/angela-dutra-de-menezes/
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Sobre o autor Vamberto Freitas:
Natural da Ilha Terceira (Açores). Adolescente partiu para a América, como emigrante e na Califórnia realizou seus estudos secundários, sua formação universitária e iniciou a atividade profissional de Professor e Crítico Literário. Retorna aos Açores na década de 90. É,hoje, Leitor de Língua Inglesa na Universidade dos Açores, escritor com uma expressiva produção literária sobre as literaturas norte-americana e açoriana, neste momento preparando uma coletânea de ensaios sobre literatura luso-americana com saída prevista para o próximo outono. Tem vários livros, entre os quais Jornal de Emigração (4 volumes) O Imaginário dos Escritores Açorianos e A Ilha em Frente: Textos do Cerco e da Fuga. Publicou algumas traduções, principalmente da poesia de Frank X. Gaspar e dalguma prosa de Katherine Vaz intitulada O Outro Lado do Espelho: Imaginários Luso-Descendentes.
Sua obra caracteriza-se pelo rigor técnico e estético com que examina cada obra literária e exara sua crítica. Sua escrita revela uma grande sensibilidade poética seja no ensaio,seja na tradução de um poema. Sua presença é com frequência requisitada em eventos literários no País e no exterior,especialmente nos Estados Unidos. Vamberto Freitas, é uma referência e é reverenciado por seus pares,leitores e alunos. Sua bibliografia inclui além das obras citadas inúmeros ensaios,artigos e crítica literária e cultural publicadas em revistas,suplementos literários e jornais em Portugal, nas Américas do Sul (Brasil)e do Norte.Atualmente,mantém uma coluna semanal no jornal Portuguese Times (USA).
Vamberto Freitas que por muitos anos manteve o Suplemento de Cultura SAC (Açoriano Oriental) e SAAL (Revista Saber Açores)é uma voz a falar sempre a favor de uma literatura açoriana.