Sobre Murmúrios com Vinho de Missa,
de Álamo Oliveira
“Não há livros morais nem imorais. O que há são livros bem escritos ou mal escritos”
Oscar Wilde (1854-1900)
É com este pensamento de Wilde que saio da leitura do romance Murmúrios com Vinho de Missa (Letras Lavadas edições, 2ª edição, 2013), de Álamo Oliveira, escrito em 2006 mas só publicado no corrente ano.
A obra ostenta na capa uma cinta com o seguinte aviso à navegação: ”Romance para Adultos”. (1) Operação de marketing? Não creio e dispensa-o a obra do autor: 36 livros escritos até agora em diversos géneros e diversificados registos.
Alguma imprensa tem anunciado este cometimento literário de Álamo Oliveira como uma abordagem ficcionada aos meandros da pedofilia entre o clero da igreja católica. Nada de mais redundante e redutor e, até certo ponto, falso. O romance é obviamente muito mais do que isso, como compreenderão aqueles que o souberem ler (2). A pedofilia funciona aqui apenas como um pretexto (ou, se quiserem, um pré-texto). Estamos perante um livro que é muito mais do domínio temático da homossexualidade do que propriamente da pedofilia.
A literatura é uma procura do sentido da vida e uma interrogação do homem no mundo. Não é escritor aquele que escreveu certas coisas, mas aquele que escolheu dizê-las de um certo modo. Ora, nesta matéria, Álamo Oliveira aprendeu a lição de André Gide: “não se escreve boa literatura com bons sentimentos”…
De resto, quem estiver atento ao percurso literário deste terceirense saberá que toda a escrita alamiana é, de alguma forma, transgressiva e transgressora. Com efeito, Álamo, enquanto homem e escritor, nunca foi de deitar água a pintos… Recordo aqui a forma como abertamente já havia tratado o tema da homossexualidade no seu romance sobre a guerra colonial, Até Hoje (Memórias de cão), publicado em 1986. De resto, esse arrojo amoroso já estava contido na sua poesia de carácter homoerótico: Cantar o Corpo (1979) e Nem Mais Amor que Fogo (1983).
Por conseguinte, é nesta espécie de continuidade temática que, a começar pelo título, Murmúrios com Vinho de Missa (onde o profano e o sagrado se misturam), o livro foi escrito: para quebrar tabus e preconceitos, denunciar hipocrisias e falsos moralismos, num tempo (hoje, tal como há 50 anos) em que o impulso censório, obscurantista e homofóbico falam mais alto.
Aliás, considero que Murmúrios com Vinho de Missa é essencialmente um livro sobre a intimidade e a complexidade da vida, com especial incidência para a solidão humana. É esta solidão que as duas personagens centrais do romance carregam: o padre Raul e a professora Lucília, naturais da ilha de S. Jorge.
Ambos com mais de 50 anos de idade, o padre Raul (na ilha) e a professora Lucília (na diáspora americana), vivem, cada um à sua maneira, muitas formas de solidão povoada por segredos, medos, transgressões, recalcamentos, desejos inconfessáveis e frustrações existenciais. O padre Raul, homossexual, colocado numa paróquia da ilha Terceira, entrega-se aos prazeres da carne com José Carlos, um jovem de 18 anos, que, a troco de sexo, o explora e chantagia. A professora Lucília (que cortou o cordão umbilical com a ilha), leitora de Português na Tulane University, em New Orleans, Louisiana, também vive um “relacionamento ilícito”, por via de uma relação tempestuosa com Márcio, estudante brasileiro que lhe dá prazer e preocupações…
A extrema juventude e a beleza dos amantes José Carlos e Márcio funcionam, respetivamente para o padre e para a professora, como pulsão do desejo, vertigem do prazer e consumação do ato sexual (“cet obscur objet du désir”, diria o cineasta Luis Buñuel se fosse para aqui chamado), e, ainda, como escape a um quotidiano banal e pardacento (para o padre) e como exorcismo a uma infelicidade afetiva (para a professora).
Transgredindo os códigos prevalecentes na sociedade, o padre Raul e a professora Lucília são personagens em rutura e conflito com os paradigmas aceites (e exaltados) pela maioria das suas comunidades. No fundo, valorizam o que a norma social rejeita e reprime: o padre quebra o voto de castidade e põe em causa o celibato; a professora faz por esquecer a diferença de idades que a separa do jovem amante que a deixa em “apuros financeiros”. Como denominador comum, Raul e Lucília serão vítimas de manipulação e extorsão por parte dos seus jovens amantes, sendo por estes seduzidos e abandonados…
E que bem que Álamo modela as suas personagens, dando-lhes consistência e fundura psicológica, recorrendo a cinematográficos flashbacks (por exemplo: o bem conseguido raccord em que os então jovens Raul e João se masturbam e depois ordenham as vacas à mão, culminando a ação com o paralelismo “esguicho de leite” / “ejaculação”…). Creiam que este é um belo livro sobre a iniciação, isto é, sobre o despertar para a vida e para o conhecimento das coisas.
O romance organiza-se e articula-se em polifonia narrativa. Alternadamente de capítulo em capítulo, Lucília narra a sua própria história (em “falas” de monólogo interior) e vai escrevendo “rascunhos” destinados a um suposto romance sobre a história do padre Raul, a pedido deste. Paralelamente vai escrevendo a sua tese universitária, fala-nos de Jonathan (com quem vive uma bela história de cumplicidade e amizade) e questiona as mitologias do quotidiano. Sempre com música de jazz em fundo.
Obviamente que por detrás destas vozes narrativas se esconde Álamo Oliveira, cavaleiro andante por amor à literatura. Vivendo no microcosmo geográfico da Terceira, o autor (d)escreve a ilha e a diáspora açoriana em toda a sua dimensão telúrica e humana. E, do Raminho para o Mundo, lança olhares desapiedados sobre alguns dos acontecimentos que marcaram a nossa história e a nossa vivência dos últimos cinquenta anos, dando conta dos problemas fundamentais da condição humana. Com imaginação criadora, penetrante argúcia e expressão poética.
Admito que Murmúrios com Vinho de Missa seja um “romance inquietante”… Mas, para mim, o que nas 223 páginas deste livro encontrei foi maestria narrativa, espessura evocativa e uma muito atenta observação do humano. O resto é conversa.
Victor Rui Dores
(1) Em entrevista televisiva a mim concedida, Álamo Oliveira diz que o romance se destina “a adultos de boa vontade e culturalmente tolerantes”.
(2) Saúdo, a propósito, o talento crítico que Luiz Antônio Assis Brasil, Onésimo Teotónio Almeida, Vamberto Freitas, Carlos Bessa e Joel Neto puseram nas leituras que fizeram deste romance.