POR: Luiz Fagundes Duarte
E TUDO SE PASSA como se de repente uma mulher chegasse ao pé de nós e dissesse: “Sou poesia”. E nós, lembrados do famoso grito de Natália Correia – “Oh subalimentados do sonho! A Poesia é para comer!” -, sem nada mais podermos dizer, achamos que sim, e logo ali nos sentamos, serenamente, como Eça de Queiroz disse que fizera no dia em que conhecera Antero de Quental, a ouvir esta poesia de carne, e sentindo cá bem dentro de nós que gostaríamos de passar o resto da vida – ali sentados ainda – a ouvi-la.
Tudo se passa como se Angra, e nós dentro dela, deixasse de ser a Rua do Galo ou o Pátio da Alfândega, ou a Rua do Pau São, ou o Alto das Covas, ou a Praça Velha, ou a Memória – se transformasse nas artérias por onde corre o sangue quente de uma mulher que de repente chega até nós e diz: “Sou poesia”.
E tudo é como se nós, sem nos precatarmos, olhássemos para tudo o que nos rodeia e percebêssemos que afinal vivemos numa cidade feita de sangue e carne – mas não o sangue frio que nos remete para a morte, antes o sangue quente que mantém viva a carne. Que se faz Poesia.
E é como se nos vasos, canteiros e quintais das nossas casas, de repente, crescessem árvores que se desfazem em frutos. Outros frutos, gerados no húmus, que não aqueles que nascem nas estufas que nos tiram o ar.
Mas, afinal, é tudo muito simples: a Luísa Ribeiro não escreve poesia – descreve-se; não faz poesia – faz-se; não nos diz que é poeta – diz-se. Como as maçãs que brotavam, cresciam, amadureciam e caíam da árvore, livremente, ao ritmo das luas, no pomar que nos tempos da fome o meu pai plantou na Serreta – para que aos filhos não faltassem frutos que comessem.
Porque, como a Poesia, os frutos são para comer. Outros frutos sejam eles, como cada poema, cada verso, cada frase, cada palavra, cada sílaba – cada vírgula – de um livro da Luísa Ribeiro. Dela, como se fossem de Santa Teresa de Ávila, de Virgínia Woolf, de Florbela Espanca, de Natália Correia, de tantas mulheres subalimentadas da vida que, para melhor saciarem a fome, se fizeram e desfizeram em poesia – e se refizeram em poemas.
Acho que nem Angra, nem os Açores, nem Portugal descobriram ainda o pomar em que a Luísa Ribeiro, como nas lendas dos lobisomens, todas as noites, pelas luas que mudam, se transforma em árvore que dá frutos. E, como a árvore que no poema do Génesis produzia os frutos da ciência do Bem e do Mal -, com ela nos deparamos, vestida de serpentes sedutoras, pronta a convencer-nos de que há muita coisa à nossa volta que é preciso ver, e que nós próprios somos parte dessas coisas. Eu, leitor, sou um fruto desta árvore, o que vale dizer que sou um poema deste livro.
E cada um de nós, feito assim em poesia depois de, como as borboletas da fruta, deambularmos pelo Éden em que se transforma cada livro da Luísa Ribeiro, e este em particular, dá de repente por si a gritar, como Natália, que há sonhos que só podem ter corpo num poema – e que esse poema pode ser o nosso corpo. A cada poema da Luísa Ribeiro em que dou uma trinca – é como se alguém me trincasse. E sinto-me um alimentado do sonho. Com corpo.
Diz Nuno Júdice, no prólogo que escreveu para este livro, que no fim do percurso se consegue “uma reconciliação do Eu consigo próprio”: Acho que sim, porque como a Luísa o Nuno Júdice é um grande poeta do silêncio – e, apesar do corpo – do sangue e da carne quentes – que neste livro se desfaz e refaz em 29 fragmentos – o silêncio é a grande marca da poesia que nele se encontra: uma mulher, que é poesia e pronto, percorre-se no silêncio, porque fala sem ter respostas – descreve-se em silêncio, faz-se em silêncio, diz-se em silêncio. Traz, como diz, “a tragédia nos olhos fechados”: e como as grandes trágicas, passa pelas gentes sem que alguém, olhando-a a veja: “Passo entre portas rasgadas no branco das paredes e ninguém me vê passar no branco rasgado das paredes”.
E no entanto ela está lá.
E no entanto ela passa: temos estes seus frutos vertidos em espanhol, bem recebidos por críticos espanhóis, e elogiados por portugueses que sabem da matéria. Temos uma poesia muito humana e directa, à beira das emoções, muito afastada da poesia asséptica, de laboratório, fria, que tem dominado o panorama literário português.
Os textos de Luísa Ribeiro são poesia e pronto.
São poesia no feminino, talvez.
Poesia que só lendo.
Sentindo.
Luiz Fagundes Duarte
(Texto lido aquando da apresentação de Outros Frutos de Luísa Ribeiro)
COMENTÁRIOS:
“La poesía de Luisa es naturaleza y cuerpo, ambos transformándose y confundiéndose el uno en el outro en una suerte de transmutación casi alquímica que termina en un abrazo amoroso, en un erotismo que de puro natural acaba por ser espíritu puro y es, en el fondo, “puro espíritu”. Los astros se armonizan en la noche y son tus lábios los que se ajustan a los mios, las manos calientes…, la fiebre de amar / peinando la madrugada …: la belleza más sublime se da en la experiencia de lo cotidiano; las emociones están en la pura sensación como metáfora que no parece tal, más bien se diria (lo diria una lectura superficial, no poética) que es mera descripción; pêro es en realidad símbolo cargado de emotividad sugerida” Emílio Ballesteros
“Indissociável de uma vivência que se reflecte na subtil escrita destes poemas, a poesia de Luísa Ribeiro transporta-nos para uma dimensão que recupera a tradição lírica, mas lhe associa um sentimento do presente que o enche de uma consciência das coisas e do mundo filtrada por esse olhar cercado pelo mar (traduzindo a sua situação insular), em que se realiza o permanente retorno entre o mundo que o horizonte esconde e, por outro lado, o quotidiano que permanece sob a nuvens que “obedecem / ao fogo da saudade.”
É portanto uma poesia que importa descobrir, juntando-se a voz de Luísa Ribeiro a esse continente de uma poesia portuguesa que, nas últimas décadas, tem encontrado na expressão feminina um dos seus mais fecundos veios”. Nuno Júdice
Luísa Ribeiro nasceu em Angra do Heroísmo. Obteve em 1985 a 1ª Distinção em Poesia do Concurso Literário para a Juventude, da Direcção Regional dos Assuntos Culturais dos Açores, com o livro de poemas Fogo Branco. Está traduzida em castelhano na revista literária Alhucema, onde também foi responsável pela recolha de poesia portuguesa, e em Inglês; On a Leaf of Blue:Bilingual Anthology of Azorean Contemporary Poetry, Berkeley. Tem um conto editado na revista brasileira O Bestiário, e outro editado pelo Teatrinho, em 2004, no livro Pinta-me um Conto.Tem poemas publicados nas revistas literárias: Mealibra (Centro Cultural do Alto Minho), Storm-magazine, Seixo-Review, Neo e Ilhas. Em 2004 publica poesia em Granada, num livro intitulado Seis Vozes Celestes. Em 2005 publica um livro de poemas, Outros Frutos, também em Granada: editora Dauro (Edição bilingue, português/espanhol). É sócia do P.E.N. Clube Português e recitou poesia em Espanha, Canadá, Uruguai e Brasil. Está também traduzida em Letão.