Stealing Fatima, o segundo volume de uma projectada trilogia de Frank X. Gaspar, iniciada com Leaving Pico (University Press of New England, 1999) é um grande romance, que provavelmente supera tudo que tem saído da autoria de luso-americanos. Bem sei que é arriscado afirmar estas coisas, mas vão aí também os termos que (me) acautelam. Não creio haver entre nós outras quase quatrocentas páginas de prosa ficcional tão consistentemente brilhantes, nem uma palavra nem um passo qualquer fora do seu lugar, um vasto, minuciosamente detalhado, rico e colorido painel que retrata uma precária comunidade de luso-descendentes na luta serena pela sua sobrevivência num oceano de outros, bem mais ricos e numerosos, os que o narrador diz serem “from Away”, os “de Fora”. Trata-se, no romance, de uma cidade “mítica” norte-americana, mas de imediato qualquer leitor atento saberá que é a transfiguração de Provincetown nos nossos dias, essa comunidade na ponta extrema de Cape Cod fundada por pescadores continentais e açorianos.
Aliás, a própria capa de Stealing Fatima traz um quadro que representa a sua Igreja Católica, o centro nevrálgico e aglutinador de toda a narrativa, sob a tutela de um padre de nome Manuel (Manny) Furtado, encarregado pela Diocese de manter o que resta da comunidade lusa integrando-a com todos os outros, enquanto ele próprio tenta salvar-se numa tremenda crise de fé e de espírito. Está tudo aqui muito para além da crise actual da Igreja: está toda uma humanidade a doer num mundo pós-moderno sem as regras de outrora, a memória ancestral a desvanecer-se mas arreigadamente persistente, o futuro tão incerto como o regresso dos antigos barcos piscatórios apanhados numa medonha tempestade atlântica. Dois incêndios aqui acontecem no mar e em terra, a pequena e isolada comunidade de olhos postos nas chamas da sua morte e, logo, do seu possível renascimento. Nenhum outro romance retrata de modo–passe o paradoxo–tão realisticamente poético o inevitável, supõe-se, desfasamento de uma comunidade nossa na América do Norte. Frank X. Gaspar sempre se recusou, na sua poesia e ficção, diluir-se por completo no mosaico anglo-americano dominante. Em Stealing Fatima vai ainda mais longe: a resistência à morte da comunidade recorre agora a todos os meios, inclusive a um Deus em que o padre-protagonista já nem sempre acredita, relembra a mítica das origens e as linguagens da nossa gente em cada página sua, e até quando um nome ou outra palavra portuguesa aparece em itálico, o leitor recebe-a como uma oferta de amor e afecto. Não, não há qualquer inocência neste romance, muito pelo contrário, é a ironia e a constante metaforização da natureza e das coisas que sobressaem para nos colocar no estado interior de cada personagem, levando-nos ao riso empático e ao entendimento, a “religiosidade” de todos como que um regresso ao humanismo redentor, quase totalmente ausente da literatura contemporânea, a riqueza lexical do autor criando passo a passo, linha a linha, uma narrativa digressiva e ao mesmo tempo coesa como um dos seus barcos à deriva na tempestade inesperada mas avistando já a luz costeira e certíssimo quanto ao seu destino.
A cidade mítica de Stealing Fatima é ela própria uma realidade de todo irónica no contexto americano. Ponto de chegada dos primeiros peregrinos norte-europeus, tiveram medo, parece, e abalaram para outras paragens. No entanto, o monumento mais visível da cidade é precisamente dedicado a esta gente, os que não ficaram e nada lá fizeram. Os portugueses chegaram, e construíram aí mesmo as suas vidas. De pequeno e isolado burgo à beira mar, feito de pescadores rijos, os Velhos, como são chamados em toda a poesia e prosa de Frank X. Gaspar, viria eventualmente a ser descoberta pela sociedade chique da Nova Inglaterra e de Nova Iorque em busca de sossego e decência, e que aos poucos a tornaria em centro artístico a partir dos anos vinte, e logo de seguida em refúgio privilegiado de comunidades homossexuais. A gente lusa foi resistindo, mas o poder do novo dinheiro e estilos de vida foi erguendo o seu domínio, a pesca acabando, as velhas casas de picoenses, micaelenses e continentais dando lugar às moradias abastadas dos outros, os de fora, a nossa memória reduzida agora a estórias, padarias — e à velha igreja em ruínas e quase sem congregação. É isso que o padre Manny Furtado tenta segurar, chamando a si a ajuda e a cumplicidade dos que raramente se aproximavam da comunidade antiga e fundadora. Engano seu, numa viragem meio cómica meio trágica, como tudo e todos em Stealing Fatima, acabam eles, os de fora, por tomar conta do resto. Não é esse o significado primeiro do título deste romance, mas bem poderia ser.
A memória de cada um confunde-se, submerge-se na memória de todos. Quando já não resta “realidade”, quando um mundo se encerra ou acaba, restará sempre, pois, a memória e o subsequente acto criativo, a recuperação de mundos e crenças perdidas, a literatura tornando-se nessa outra e única liturgia do grupo. Padre Manny Furtado anota diária e obsessivamente o seu dia-a-dia e as suas crises interiores, copia passagens de santos e da bíblia em cadernos especiais e antigos. Stealing Fatima é, para mim, isso mesmo. O que acontece numa pequena cidade mítica mas reconhecível, acontece com nós todos mesmo dentro da “pátria”. Eis, uma vez mais, Stealing Fatima: quando o Tempo passa, passamos com ele, poucos se reconhecem na regeneração contínua das gerações adentro dos seus próprios domínios territoriais e culturais, nem sequer suas linguagens já nos são íntimas ou relevantes. A obra de Frank X. Gaspar é um outro monumento em língua inglesa à nossa sorte, lá fora e cá dentro. Muito mais real e significante do que aquele outro em Provincetown, erguido a fantasmas.
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Frank X. Gaspar, Stealing Fatima, Counterpoint, Berkeley, 2009.
O Autor: Vamberto Freitas
Natural das Fontinhas,Ilha Terceira,Açores.Reside em Ponta Delgada onde exerce a função de Professor-Leitor da Universidade dos Açores.
Conceituado escritor e crítico literário com uma expressiva produção literária sobre o sitema literário açoriano,o universo da emigração açoriana na América e,em especial, sobre literatura produzida nas comunidades da diáspora. Tendo traduzido dezenas autores (prosa e poesia) no desafio de difundir estas vozes por toda parte. Presença marcante em inúmeros periódicos dos Açores,Portugal, Estados Unidos e Brasil onde é reconhecidamente uma voz destacada no mundo das Letras Contemporâneas.