David Brookshaw é Professor de Estudos Luso-Brasileiros na University of Bristol (Inglaterra), especializado em literaturas pós-coloniais de língua portuguesa (nem Macau fica fora da sua lupa), e desde há alguns anos inclui nos seus estudos a literatura luso-americana e imigrante, tal como demonstra na sua longa introdução a Tales From The Tenth Island. Creio que o “fascínio” de Brookshaw que o leva a um esforço destes (toda a tradução é uma dura luta linguística e de contextualização literária e cultural adentro de uma outra Tradição) provém não só do facto de ele não querer deixar passar em branco a mais significativa escrita em língua portuguesa nas suas muitas variantes, como do facto de neste caso se tratar da representação ficcional de gente de ilhas minúsculas em termos geográficos a braços com a sua adaptação num continente imenso, que é a América do Norte. Europeus da periferia, a América esteve desde sempre muito mais próxima de nós do que a restante terra dos nossos antepassados, a distância que nos separa um mero factor da imaginação, as possibilidades de nova vida raramente consideradas possíveis fora das Américas (Brasil também presente e desejado durante séculos), a não ser para uma elite bem reduzida e historicamente privilegiada. A nossa relação com o destino a oeste nunca foi totalmente pacífica, mas o facto é que os açorianos sempre enfrentaram todas as barreiras imagináveis para se tornarem cidadãos da sua outra pátria americana. Brookshaw conhece todos os nossos meandros culturais e até psíquicos, a sua tradução evidencia nuances de uma criatividade pouco habitual. O seu Tales From The Tenth Island encerra, tal como a colectânea original (Sapa)teia Americana, com o conto “Adriano(s)”, o percurso de um adolescente terceirense na costa leste americana entre uma comunidade maioritariamente de micaelenses. Narração sob várias perspectivas, cada um “julgando” Adriano precocemente devotado ao Sonho Americano, rejeitando raivosamente todo o seu passado nas ilhas, logo em luta contra os próprios pais pelo que representam, no seu entender, de “marginalização” na nova sociedade, o mesmo adolescente enquanto visto e descrito nos mais depreciativos termos por outros imigrantes adultos é considerado um herói, um pequeno génio de altas potencialidades profissionais e económicas, pelos anglo-americanos que com ele se cruzam no dia-a-dia. O humor assim como uma certa postura trágico-cómica de Onésimo T. Almeida sobressaem aqui de modo muito especial, sem nunca retirar a seriedade com que um personagem é visto e tratado no drama em que se torna a sua própria reinvenção total. Traduzir as linguagens l(USA)landesas (o cruzamento fonético do português com o inglês, tão característico dos nossos imigrantes) de (Sapa)teia Americana é um tremendo desafio seja para quem for; Brookshaw reconhece-o na sua introdução, mas não hesita ante os mais “intraduzíveis” passos destas narrativas. Adriano, a certa altura, expressa grande antagonismo ante os seus conterrâneos oriundos de São Miguel, dizendo que nem sabia da existência dessa ilha até emigrar, chama-os pelo nome mais comum na Terceira do seu passado–coriscos. Tradução de Brookshaw: sons-of-bitches. Discutível, mas perto de uma semântica, por assim dizer, intencional na minha ilha natal, e vai aí só como um exemplo entre muitos outros das opções de um tradutor conhecedor e atento ao espírito preconceituoso de um povo como o nosso.
Tales From The Tenth Island foi publicado na Inglaterra, e deduz-se que dirigido a um público reduzido, mas talvez curioso de como navegaram outros ilhéus para um país anglófono, historicamente muito caro a eles próprios. Mesmo que seja lido só por outros estudiosos da lusofonia, o seu contributo não deixa de ser menos importante. O mundo de língua portuguesa extravasa em muito para além dos PALOP. Para quem não pertence “oficialmente” a essa grande comunidade espalhada por todos os continentes e outros arquipélagos, a sua criatividade literária em nada nos fica a dever. Muito pelo contrário: completa os arquivos criativos e memoriais de um povo que sempre navegou e se soube (re)construir em toda a parte, reinventando as suas próprias tradições nos mais improváveis recantos do globo, em convivências pacíficas só permitidas pela criação de novas linguagens, que nos poderão parecer estranhas, mas funcionam plenamente na conjugação da portugalidade com todos os outros. Que estudiosos como David Brookshaw, o muito prestigiado e reconhecido tradutor também de Mia Couto, o reconhecem e valorizam só poderá servir de lição a nós todos. Um pouco mais de atenção à nação peregrina deveria continuar a ser uma exigência intelectual no país de origem.
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Onésimo T. Almeida, Tales From The Tenth Island (Selection, Translation and Introduction by David Brookshaw), Seagull/Faoileán, England, 2006.
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(*) Sobre o autor:VAMBERTO FREITAS:
Leitor de Língua Inglesa na Universidade dos Açores, escritor com uma expressiva produção literária sobre as literaturas norte-americana e açoriana, neste momento preparando uma coletânea de ensaios sobre literatura luso-americana,com saída prevista para outubro de 2010. Crítico Literário dos mais respeitados por sua voz coerente com os valores e princípios éticos e estéticos, sobressaindo o rigor técnico de sua escrita e a frontalidade da sua palavra na defesa e na difusão da literatura açoriana e da literatura luso-americana. Tem vários livros, entre os quais Jornal de Emigração (4 volumes) O Imaginário dos Escritores Açorianos e A Ilha em Frente: Textos do Cerco e da Fuga. Tem publicado algumas traduções, principalmente da poesia de Frank X. Gaspar e dalguma prosa de Katherine Vaz Colabora em vários periódicos com textos de crítica literária e cultura no País e no exterior, destacando-se,em particular o Brasil, onde seus ensaios são frequentemente publicados