(Paul Gauguin, 1848-1903)
Sobrinho Caído do Céu
Não se lembrava há quantos anos tinha chegado a Macau. Porém, recordava-se do dia em que, reformado e muito aliviado, saíra do país. Apesar de já ter alguma idade, não queria ficar arrumado a um canto a ver os dias voarem. Ainda tinha energia, queria viver. A reforma, fruto de muitos anos de sofrimento e prateleira, num serviço público de má memória, não lhe servia de muito, ainda assim, era qualquer coisa. Possuía algumas poupanças, vindas de uma primeira estadia em Macau, quando tudo era aparentemente fácil, ao abrigo da administração portuguesa.
Permanecer no país que o criara seria perder a esperança e sucumbir à tristeza geral. Em Macau tinha todo o tempo para fazer o que lhe apetecesse, entre gente positiva e alegre.
Como chegou durante o Inverno, deu-lhe para preguiçar. Comia bem, dormia melhor e, nas horas vagas, dava longos passeios, fazia ginástica e cruzava-se com pessoas de todas as raças e feitios.
Dormiu até à Primavera, quando a humidade e os primeiros relâmpagos da época o despertaram. Nos seus longos passeios, por vezes assaltavam-no problemas de consciência. Era o tal grilo fabricado no Ocidente. Nessas alturas, interrogava-se sobre a sorte daqueles que tinha deixado para trás; mas à medida que os dias corriam doces e velozes, até o incómodo grilinho cedia à humidade relativa, atordoado pela algazarra geral.
Numa noite de boa memória encantou-se com uma chinesa, que lhe fora apresentada por um amigo no Clube Militar. Ela não se mostrou avessa ao seu aspecto já entradote, nem à barriga, nem à falta de cabelo. Alguns dias de namoro bastaram para a convencer a ir viver com ele.
E a Feng Mei foi recebida de braços abertos. Mais nova, obrigava o Francisco, assim se chamava o nosso reformado, a reagir e ele renascia na sua presença.
Feng Mei falava, ria, brincava, enfim era uma força da natureza. Como temia que ela se pudesse cansar dele, adoptou um cão na Anima, a associação de caridade do sítio, para a distrair.
A chinesa adorou o presente e, pouco depois, foi buscar mais uma cadelinha, porque dizia, que os animais precisavam de conviver com outros da mesma espécie. Ele deixou. Por que não, se ela o fazia tão feliz? Era uma boa oportunidade para retribuir o bem que dela recebia.
Feng Mei todos os dias saía e dava longos passeios com os cães, as amigas e os cães delas.
Macau estava tão mudado, pensava o Francisco, dantes os chineses passeavam passarinhos, mas no presente cada vez havia mais chineses agarrados a cães e gatos.
Os dias sucediam-se com suavidade e poucas contrariades. Uma vez por outra, saltavam algumas, é certo; nem valia a pena pensar muito nelas. Podia ter menos encontros com a família da rapariga, pois podia, mas logo se conformava. Era aí que as saudades o afagavam: passageiras, vinham como nuvens, que Feng Mei sabia transportar para longe.
Como fora infeliz no primeiro casamento! Aliás a família da mulher pesara no seu divórcio. As criaturas eram insuportáveis, sempre a conspirar contra ele. E da mulher apenas conseguia recordar a antipatia e o clima de desconfiança que reinava entre ambos. Davam-se tão mal, que chegou a alvitrar a hipótese de ela o querer matar.
Um dia, após um delicioso jantar, muito misturado, com pratos chineses e portugueses, bateram-lhe à porta. Os cães ladraram como era hábito. Ao abrir, mal acreditava que tinha pela frente o sobrinho. Trazia um ar entre o desvairado e o derrotado.
Francisco nem o cumprimentou, nem disfarçou, atirando contrafeito:
– Por que apareces sem avisar, Gabriel? Aconteceu alguma coisa?
– Já não aguentava mais. Estive três anos a trabalhar numa empresa, onde o patrão pagava quando podia, de modo que aqui estou a pedir-lhe ajuda. Venho com dívidas, mas prometo que, se me ajudar a encontrar emprego, em breve as pagarei, bem como à sua hospitalidade.
– És maluco, rapaz, volta para Portugal. Não quero sarilhos com os teus pais.
– Sarilhos com os meus pais? Eles só têm a agradecer-lhe se me der a mão…
– Queres a mão, o pé e tudo o resto. Como sabes, não sou rico, estou reformado e o que tenho serve-me para levar uma vida boa e digna, mas se me puser a dar a mão a toda a gente, o que vai ser de mim?
– Eu não sou qualquer um, pertenço à sua família…
– Pior um pouco! Além disso, os chineses estão a dificultar as entradas a estrangeiros, já nem os portugueses escapam. É natural: a terra está a abarrotar, mal se consegue andar nas ruas deste oásis; é a cidade mais povoada do planeta, de modo que eles têm de travar as emigrações…
– Ajuda ou não?
– Bem, entra, qualquer coisa se há-de arranjar. Se não conseguirmos nada, voltas para Portugal, percebes?
Ana Cristina Alves– Professora Convidada do Departamento de Português da Universidade de Macau, onde lecciona as disciplinas de Questões Culturais na Tradução do Chinês/Português e Português Avançado. Colabora na Revista de Cultura e tem vários trabalhos publicados, entre os quais a tese de Doutoramento em versão encurtada, A Mulher na China (2007) e A Sabedoria Chinesa (2005), sendo ainda co-autora com Wang uoying de Contos da Terra do Dragão (2000) e Mitos e Lendas da Terra do Dragão (2010).