É na literatura que consigo cultivar os lugares altos e baixos
da humanidade, do espírito humano, onde espero encontrar,
não a verdade absoluta, mas a verdade da narrativa,
da imaginação, do coração.
Salman Rushdie, escritor
Não há nada que substitua um bom livro de ficção. E quando esse livro tem como temática as experiências das nossas comunidades de origem portuguesa no continente norte-americano, a gratificação é redobrada. Foi isso o que aconteceu com Barnacle Love, de Anthony de Sá publicado neste ano de 2008 pela Random House do Canadá. Um livro fascinante que retrata as vivências das nossas comunidades, desde as turbulentas saídas dos Açores, ao não menos tumultuoso processo de aculturação e integração, que nem sempre acontece. É uma voz nova, arejada, penetrante, coesa e descomplexada. Um filho de emigrantes em terras norte-americanas que escreve uma história universal, tendo como pano de fundo uma família dos Açores e as nossas comunidades no continente norte-americano, mais concretamente na mega cidade de Toronto, no Canadá.
Anthony de Sá, é filho de pais emigrantes da Lomba da Maia, ilha de S. Miguel, nos Açores. Nasceu em 1966, tendo vivido a sua infância e juventude na comunidade portuguesa de Toronto. É professor do ensino secundário, director do Departamento de Inglês e coordenador dum programa para incentivar jovens para a beleza e a satisfação da escrita. É casado e tem três filhos.
Tem contos publicadas em várias revistas literárias canadianas e americanas. Esta é a sua primeira publicação em livro, uma estreia, que como escreveu o conhecido escritor Nino Ricci, é um trabalho: "evocativo e elegíaco." Trabalha presentemente num romance.
No continente norte-americano, Canadá e Estados Unidos da América, temos tido, ao longo das últimas décadas, uma série de vozes interessantes que em inglês têm criado excelentes obras, quer na ficção narrativa, quer na poesia, as quais, como esta, têm sido publicadas por editoras de cariz nacional e internacional. Lembro-me, entre outros, de Katherine Vaz e Frank Gaspar, nos Estados Unidos e de Erika Vasconcelos e Paulo da Costa no Canadá.
Barnacle Love é uma colectânea de histórias que se interligam e que seguem o percurso de Manuel Rebelo, natural da Lomba da Maia em S. Miguel, que decide, como tantos outros açorianos, deixar a sua terra em busca do seu sonho. A história, poder-se-á dizer, é um paralelo da história da emigração açoriana para o Canadá. O emigrante que vem só, as lutas de sobrevivência na nova terra, a reunião com a família, neste caso, voltar à terra para casar e as vivências e os choques duma comunidade rural, agora enfrentada com um meio metropolitano. É que ao longo destas histórias, com cada capítulo que se lê, lá está o que o jornal The Ottawa Citizen descreve como sendo "as forças opostas que podem rasgar qualquer família emigrante…sem conseguir tornar-se parte de ou sobressair na {nova terra} Manuel é qualquer emigrante, todo o emigrante, sempre em busca dum sonho inalcançável, e nunca em casa."
Este excepcional livro, que li de um só fôlego, porque não conseguia deixá-lo, nem um só minuto, contém todos os elementos duma família, de todas as famílias que um dia deixaram as suas ilhas em busca da felicidade. E lá estão alguns dos dilemas que se tem vivido nas nossas ilhas e nas nossas comunidades: o abuso sexual de crianças por alguns padres da ruralidade açoriana, a violência doméstica, o alcoolismo, as lutas entre os emigrantes e as primeiras gerações. Tudo está contado duma forma cativante. Há uma interligação total entre a terra de origem e o novo mundo. Na sua escrita, Anthony de Sá desdenha uma harmonia perfeita entre a brutalidade e a ternura. Tal como escreveu o jornal The Vancouver Sun na recensão que fez a este livro: "Barnacle Love cultiva a dor e a poesia das esperanças dos emigrantes com descrições tão ricas que massajam os sentidos…"
Como referi, uma grande parte deste livro é essencialmente uma luta entre as gerações, entre um pai, que apesar de insistir que uma vez que estavam no Canadá deveriam todos em sua casas falar inglês, vivia num gueto português, e dos filhos, o António que cedo optou por Tony e a Terezinha que propositadamente passou a Teri, os dois querendo romper com as vivências e os costumes (alguns para eles extremamente arcaicos) dos seus pais e da geração emigrante. A dualidade do emigrante que quer ser canadiano (ou americano, nos EUA) à força, mas que no seu íntimo sabe que será sempre português (embora um português diferente) e os filhos que já não entendem aquele mundo das matanças de porco, das sardinhas assadas, dos quintais diferentes, do vestuário ultrapassado, e acima de tudo, dum mundo onde, como nos diz o personagem Tony, há sempre olhos por detrás das cortinas.
Ler Barnacle Love, é essencial para se compreender os múltiplos conflitos que englobam a nossa história colectiva de comunidades de origem portuguesa no continente norte-americano. Diria mesmo que ler Barnacle Love é também necessário para se compreender os Açores, particularmente para quem, como eu, não entende os Açores sem as comunidades. Por último, ler Barnacle Love é ainda urgente para que se compreenda os vários mundos que compõem o cosmos norte-americano e duma forma particular, a beleza que é, o multiculturalismo canadiano.
Este é um livro para todas as gerações, para todos os grupos étnicos, porque nesta família portuguesa e no seu processo de adaptação à nova terra lá estão traços e flutuações doutros grupos étnicos, mas é imprescindível que seja lido e reflectido pelas novas gerações de luso-descendentes, porque como escreveu o jornal Toronto Star este livro contém a "sedução irresistível da familiaridade e da convicção."
*‘SENHOR CANADÁ’ Título dum capítulo do livro.
Diniz Borges
Califórnia, Julho de 2008
Irene Maria F.Blayer
31-07-08