O percurso da Adelaide até ao Sorriso tinha sido muito longo, por vezes penoso, mas também pleno de sentindo de missão e da alegria de quem vive viva. O Sorriso encerra alguns dos tempos que ela tinha abordado na sua obra literária precedente, e que começou a publicar com alguma regularidade após a sua tese de doutoramento. Nesses antecedentes de o Sorriso, está com alguma centralidade a sua prosa poética reunida em De Emigração Tecido, escrito em 1987 e publicado em 1990, e logo após nos termos conhecido nos famosos encontros da Maia (fim dos anos 80 e princípio dos anos 90), organizados por Daniel de Sá e Afonso de Quental, nos quais comecei a participar logo de início por sugestão de Onésimo Almeida, que acompanhava o meu percurso na Califórnia, tanto através da minha escrita em jornais de língua portuguesa e mais tarde como correspondente do Diário de Notícias (Lisboa) a partir de 1979, onde eu tinha ingressado com esse estatuto a convite de Mário Mesquita. Tinha-me divorciado há relativamente pouco tempo quando num desses encontros conheci a Adelaide. Eu tinha feito uma comunicação sobre literatura açoriana a partir de um ponto de vista de quem sempre estivera ao longe e nas margens, e no fim a Adelaide veio falar comigo e dizer-me do quanto se tinha identificado com o que eu dissera, pois ela também tinha sido imigrante na América. Perguntei-lhe com alguma sobranceria meio defensiva onde tinha estudado e com quem. Em Nova Iorque, respondeu. Eu tinha abordado também alguma da obra de João de Melo, seu vizinho na Achadinha até à adolescência, da mesma idade, companheiros de escola, tendo os dois mantido sempre uma profunda amizade através dos anos na ausência, ele em Lisboa e ela na América e depois em S. Miguel, e quem ela agora lia avidamente e em pouco sobre ele escreveria páginas fundamentais, publicadas muito mais tarde em João de Melo e a Literatura Açoriana. Que pena, disse-me ela, alguns dos seus romances não estarem traduzidos para o inglês. Olhei para ela com acrescido interesse. Falei-lhe em tradutores famosos nos Estados Unidos, e que já tinham trabalhado a literatura de língua portuguesa, tanto de autores brasileiros como de portugueses. Quem, perguntou ela? Gregory Rabassa, antes de ninguém, afirmei, pensando que lhe estava dando informação absolutamente original! Repetiu ela: Gregory Rabassa? Sim, Gregory Rabassa, disse-lhe mais uma vez e aprontando-me para lhe explicar que ele, entre muitas outras obras famosas no mundo, tinha traduzido Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Márquez, tendo com esse trabalho ficado quase tão famoso como o próprio autor colombiano. Com toda a serenidade, Adelaide informou-me de seguida: Fui sua aluna na New York City University, e hoje ainda sou sua amiga, mas não tenho mantido contacto com ele nos últimos anos. Quedei-me no silêncio por um instante, olhando-a agora com menos arrogância e altivez. Você estudou com Gregory Rabassa, é sua amiga? E ainda não lhe enviou O Meu Mundo Não É Deste Reino do também seu amigo João de Melo? Que grande ideia, respondeu-me ela, e assim reiniciarei os meus contactos com Rabassa. Não demore nada a fazer isso, respondi-lhe. Do que resultou falarei noutra parte, mas para além de todo o mais que viria a ser decisivo para as nossas vidas, foi a correspondência que começámos logo a manter quando regressei à minha casa em Buena Park, ali nos arredores da Disneylândia. A nossa "relação" ao longe tinha começado, hesitante e subtil, mas as cartas em breve se seguiriam, também com conversa literária, apreciações de autores açorianos que líamos mutuamente, o que ela e eu íamos escrevendo acerca de tudo isso. Adelaide não publicava nada, estava relutante em mostrar ao mundo a sua poesia e prosa poética, as amarras eram muitas, inclusive o facto de ser professora de literatura norte-americana na Universidade dos Açores, onde raramente (pelo menos com ela) havia trocas desse género entre colegas, todos "catalogados" nas suas áreas de especialização, à semelhança do que acontece na maioria das universidades em toda a parte. Insisti que me enviasse alguns dos seus poemas, e ela fê-lo prontamente, já organizados numa sequência que manifestava uma clara intenção de eventualmente os publicar. Li-os e reagi de imediato. Que teriam de ser publicados, se ela não tratasse disso, tratava eu! Nos Açores ela seguia a publicação do meu primeiro livro de ensaios e crónicas, A l(USAlândia Reinventada, selecções da minha colaboração nos jornais portugueses de imigração e do Diário de Notícias. Dizia-me que não, que a sua vida estava cada vez mais complicada, por vezes sentia-a por um fio. Eu ia lendo os subtextos dessas cartas, e cada mais sentia uma aproximação irreversível. Numa longa carta que lhe enviei sobre o que em breve viria a ser De Emigração Tecido, dizia-lhe que, para além de tudo o mais, eram ainda poucas as mulheres da nossa geração que publicavam nos Açores e na Diáspora, e que o seu livro seria um contributo precioso para um melhor entendimento de toda a nossa experiência de vida dentro e fora do arquipélago. Ela tomou coragem, e decidiu publicá-lo numa então pequena editora de Ponta Delgada. Pediu-me autorização para reproduzir parte da minha carta na contracapa. Fiquei extremamente honrado com isso, pois sabia que o livro marcaria pelo menos esse outro espaço entre nós que, uma vez mais, ainda estava quase em branco: a experiência imigrante açoriana na América do Norte vista por uma mulher formada em literatura, consciente de si própria e da sua sorte na vida, boa manipuladora de todas as linguagens que eram nossas, ora no quotidiano vivencial ora na literatura. Cito aqui esse passo, pelo que esclarece no que eu viria a sentir muitos anos depois pelo Sorriso:
Li De Emigração Tecido e felicito-me por uma poesia do tempo perdido e apreendido, esse inescapável tema da nossa existência e arte atlânticas, esse quebrar o isolamento físico e psíquico, para uma vez mais tão belamente agarrar de novo a vida. Estarei muito fora da tua escrita poética quando aí vejo a dor como passo fundamental para uma renascença e contínua aventura que é a vida de cada um e de todos nós, quando, nessa tua linguagem límpida e não-sentimental, negas o niilismo que a muitos está corroendo nos confusos dias (como diria o falecido James Baldwin) de indizível caos nas vidas de cada um de nós e da colectividade? Vejo ainda nas tuas comovidas páginas de De Emigração Tecido uma tremenda luta entre o indivíduo que insiste em sobreviver bem vivo e uma Natureza que, no meio desse mar, conspira perpetuamente para amordaçar o Homem, ora aterrorizando-o, ora oferecendo-lhe miragens da sua indescritível beleza. É um triunfo absoluto da Vida e da Beleza; uma ode linda à força humana, ao seu optimismo, determinação e vontade de viver.
É claro que escrever um romance (ou uma outra obra qualquer) é em si próprio um acto de esperança de que as nossas vidas tiveram (e têm) algum significado, é sobretudo um acto de esperança de que muitos dos que nos rodeiam verão nessas páginas um mundo comum, se identificarão em graus variáveis com a humanidade reinventada por essas palavras.
Vamberto Freitas Universidade dos Açores
Irene Maria F. Blayer
Agosto 2008