Sorriso por Dentro da Noite
ou a noite dentro de um sorriso…
Tenho o livro desde 2004. Sorriso por Dentro da Noite. Com uma cativante dedicatória da Autora. Ela mesmo, Adelaide Freitas! Com letra ainda firme e inconfundível, de uma clareza agora comovente. Quantas vezes já o li? Não dou com a conta, mas sei que em horas de luta contra o que esta vida nos pode trazer, naquelas horas em que partir significa entrar na verdadeira dimensão do pouco que somos dentro deste mundo de muitos medos, surpreendo-me com o Sorriso por Dentro da Noite nas minhas mãos e identifico-me com os receios e temores da Xana, e com a tempestade na ilha que treme e fenece, em sismos e ventos, chuva e mortes, para renascer sempre em parto de esperança com aquela luz do nascente, do Nordeste que Adelaide canta como ninguém cantou e perpetua como ninguém o fez.
E, curiosamente, depois de (re)ler o Sorriso por Dentro da Noite, sinto-me sempre diferente, não porque acordei personagens que dormem nas páginas do livro e nas minhas lembranças, mas essencialmente porque vejo a noite dentro de uma sorriso em que Adelaide Freitas mergulhou, com a doença de que foi acometida e que, como diz Vamberto Freitas, seu marido, faz com que a pior forma de saudade seja a saudade da pessoa que está ao nosso lado.
Perante este sofrimento e esta grandeza de olhar a vida, sinto-me simplesmente pequenino e por isso mesmo, preso de modo muito especial a este livro que considero uma obra-prima da literatura que se faz nos Açores. E não uso a expressão “literatura açoriana”, de que gosto imenso, apenas para evitar tentações redutoras de regionalismos limitativos, quando sou apologista do regionalismo universalizante que em Adelaide Freitas atingiu um patamar ímpar em Nordeste: E no Princípio Era a Ilha, ou ainda a Viagem ao Centro do Mundo, para não falar na sua memorável tese de doutoramento: Moby Dick A Ilha e o Mar – Metáforas do Carácter do Povo Americano, tudo ainda com o nome de Adelaide Batista.
Toda esta e muita mais obra escrita pela autora do Sorriso por Dentro da Noite é de uma grandeza que nunca é demais relembrar, essencialmente porque Adelaide Freitas não chegou ainda ao conhecimento do grande público açoriano como já devia, há muito, ter acontecido.
Ainda há meses, outro grande escritor açoriano, Álamo Oliveira, escrevia, desassombradamente, como é seu timbre, que Adelaide Freitas está no limbo da memória colectiva. E não está sozinha. Tem a companhia de muitos outros, desaparecidos ou não e que estão à espera de nada. No entanto, nem ela, nem os seus livros merecem tamanho silêncio. Infelizmente, ela não voltará a surpreender-nos através da escrita. Mas surpreender-nos-á sempre através dos livros publicados, pois em cada ensaio de tema social ou literário ficou a sua inteligência, o seu poder analítico, a sua capacidade de convencimento, os seus saberes de âmbito universalista.
E sobre este romance, o mesmo escritor açoriano diria que é, na verdade, um livro de releituras, porque, na sua trama estrutural, há como que um mar de propostas de entendimentos que nos conduz para opções diversas, para diferentes estados emocionais e até para conclusões interpretativas plurissignificantes. Em cada leitura caberá sempre um olhar outro e as personagens, que Adelaide Freitas vai pacientemente construindo ao longo da sua narrativa, continuando as mesmas, deixam, ao leitor, como que uma espécie de liberdade para a reinvenção ou para adendar pormenores de caracterização.
E é isto mesmo que eu sinto e por isso aguardo uma tradução de que há muito já se fala e sonho com esta obra como o guião perfeito para um trabalho de ficção cinematográfica imorredouro. Noutro país e noutra dimensão cultural já teria acontecido.
Daniel de Sá, conhecido pela sua exigência e perfeccionismo, diria deste romance que «Esta é a história dos «emigrados» que ficam, aqueles que partem sem sair da ilha, porque vai o melhor deles com quem lhes leva as memórias e os sentimentos, falando todos a mesma voz, numa espécie de discurso indirecto na primeira pessoa, o que não quebra o ritmo da leitura, o turbilhão das ideias».
E que melhor tema para a tela do cinema?
São mais de duzentas páginas (falo da edição de 2004 da Editora Ausência) em que se desfia o drama da saudade dos que partiram sempre embrulhado no coração ferido de quem não tem asas para voar e fica no lodaçal da pobreza que Adelaide Freitas de forma especial conhecia e acompanhava, até pelo desempenho que teve durante alguns anos como Presidente do Instituo de Acção Social do Governo Regional dos Açores, e que condensou no seu livro de ensaios Regresso a Casa: uma Proposta de Intervenção Social. A ilha surge em todo o seu esplendor, das alturas do Pico da Vara, às rochas de verde vestidas do Nordeste e é bela mesmo quando fustigada de vento e batida pela chuva, casebres a desmoronar-se, sonhos a evolar-se, desespero de maldizer a sorte e a vida e esperança sempre a renascer em quadros que Adelaide imortaliza na narração de festas e tradições, matanças e Espírito-Santos, embarques e desembarques, cheiros de cartas da América, e os caixotes no esperado navio, mais as louças guardadas, tão bem guardadas, como as paixões fechadas em prantos escondidos, porque amores proibidos corriam a terra e da fama ninguém se levantava.
Propositadamente, não queria citar Vamberto Freitas, o companheiro de Adelaide, mas não consigo resistir. Lembro-me da sua ansiedade pelo livro, quando me visitava no “Correio dos Açores”, ligados que estávamos pelo que foram os cinco anos do Suplemento Açoriano de Cultura, o nosso SAC. E o espelho dessa ansiedade está naquilo que mais tarde o próprio Vamberto viria a escrever: Quando recebemos Sorriso Por Dentro Da Noite já em forma de livro pela primeira vez a Ponta Delgada, a nossa alegria foi a mais intensa, pois ainda não suspeitávamos da gravidade do que estava para vir na vida da autora. Do conteúdo já sabia eu, mas a sua apresentação ia agora além de todas as nossas expectativas. De capa verde-escuro, com o que parecem ser nuvens ameaçadoras, — o simbolismo ameaçador, sempre, a profecia como que tomando forma visível — duas hortênsias azuis a meio de um mar agitado, assassino.
Mais palavras? Falta-me o engenho, tanto quanto me sobra o respeito por esta Adelaide Freitas, agora ausente na sua presença entre nós. Mas se ela não me lê, eu leio-a! E fico-me neste abraço à pessoa certa: o meu Amigo Vamberto Freitas! E a quem de direito, uma pergunta “torta”:
Quando se fará justiça ao mérito universal de Adelaide Freitas?
Santos Narciso
In:Leituras do Atlântico,do semanário Atlântico Expresso em 31 de Dezembro de 2013