Ilhéu.
Afinal.quem é esta criatura onde qualquer definição a seu respeito pode ser indefinida? Afinal, que Ilha é esta de quase dois séculos depois dos navegadores europeus terem visitado Nossa Senhora do Desterro – de águas cristalinas,colinas verdes e frondosos garapuvus floridos – e relatado à sua majestade britânica que a vila tem aparência belíssima,os homens são polidos e corteses e as damas belas e vivazes; e que hoje os homens continuam corteses e as mulheres belas e vivazes?
Faroleiro, mexeriqueiro, folgadão, cínico, sentimental, criativo, hospitaleiro, ilhéu, ilhado, feliz. O bom ilhéu é aquele que aceita sem constrangimento o fato irremediável de que os bons empregos não foram feitos para eles, e que é difícil disputar com o cidadão do interior o melhor e mais cobiçado cargo-político burocrático. Uma boca modesta em qualquer repartição pública, desde que seja apenas um período de trabalho, de preferência à tarde, liberado de ponto com direito a fugidas periódicas para fazer uma revista às bancas de peixe do Mercado Público, fazer uma fezinha no bicho e bebericar uma cerveja, é o suficiente.
Atravessa a ponte apenas para comprar pneus, por isso o ilhéu é um ilhado,mas é feliz. É do tipo que deixa um problema urgente para ser resolvido no dia seguinte,que espera primeiro o pepino estourar para depois encarar a situação com a mais irônica das desculpas,de preferência depois das 4 da tarde,após o expediente bancário. E não aceita chá de cadeira, bronqueia e sai resmungando. É, antes de mais nada, um artista que não aceita papel de coadjuvante. Tem uma irresistível tendência para a vida mansa, impossível se deixar comandar pelo relógio; alergia ao formalismo e ao dramalhão. Às vezes, para safar-se de uma situação incômoda, é de um cinismo incomum,à beira do descaramento. Mas tira de letra. É claro que não é todo ilhéu que tem esses defeitos e virtudes ao mesmo tempo,mas o fato é que eles combinam naturalmente.
Irônico, extrovertido por natureza,o ilhéu é um gozador em potencial. Essa singular criatura sorridente e descontraída gosta de ver o tempo passar batendo papo numa roda de amigos para uma cervejinha no fim da tarde num boteco de sua intimidade, em que possa pendurara a conta. Na repartição cumpre boa parte do expediente colocando-se em ponto estratégico,para observar os movimentos daquela funcionária nova,metida numa provocante mini-saia, e aposta com o amigo se a calcinha dela é branca ou vermelha. É extrovertido, mas diante de um desconhecido mostra-se tímido,introvertido. Anda sempre buscando algo que o divirta, pois tem medo da rotina e não sabe viver sozinho, solitário. Por isso, seu final de semana começa na quinta-feira.
Um bom ilhéu não sobe o Morro da Cruz apenas para observar a bela paisagem que se descortina para a cidade. Tratável e hospitaleiro é capaz de se tornar um imediato cicerone, principalmente se a turista for atraente. Lá em cima, observando a natureza fantástica, exuberante, o surgimento da cidade entre os morros e baías, o turista suspira emocionado. Do outro lado o ilhéu, com uma pitada de ironia complementa: "Como é que pode né?"
Não menos escrupuloso, fica melindrado com as pequenas coisas e atemorizado ante o ridículo. Entretanto, mesmo argolado, não se aperta diante das piores situações, evocando a máxima de Ney Cachimbo, o poeta de botequim: "morrer é um descuido e viver é um jeitinho." Agora, se alguém quiser ver um ilhéu bafejando de raiva, fale mal da Ilha perto dele. É o inicio de uma discussão com conseqüências imprevisíveis. De certa forma alienado,um sádico irremediável,torce pelo futebol carioca com a mesma ênfase com que se diverte com Avaí e Figuerense. Um fofoqueiro sempre atualizado com as ultimas notícias,dispensando as manchetes que falam do recente aumento da cerveja. Um poeta em potencial, como declama o linotipista Olegário Ortiga: "Lá vem a lua nascendo, redonda que nem tamanco,dormi com o pé de fora e amanheci constipado."
A figura do homem urbano da Ilha de Santa Catarina, é, como tema de análise, um tanto controvertida. Alienado ao que se passa no planeta, porém é capaz de discutir com propriedade a infidelidade de Bill Clinton, por exemplo, e caracteriza Monica Lewinsk como sendo "amiga" de cama e mesa do presidente americano.
O ilhéu vive apenas o seu mundo, mas dentro do contexto é fiel. Integrado à natureza, não é de comprar briga quando uma árvore centenária ou um precioso patrimônio histórico é destruído. Prefere chorar as mágoas num ombro amigo no botequim mais próximo.
É adepto do não faz nada, do faz-de-conta, que goza da própria situação e por isso não é bem visto pelos engomadinhos do interior do estado. De boa índole, sabe perdoar e tem incrível facilidade para esquecer as coisas. Sabe que aquele que não vale nada hoje, pode valer tudo amanhã.
Como dizia o poeta Zininho, que um dia escreveu que a cidade é "um pedacinho de terra perdido no mar", o ilhéu não anda, ele flutua. Não fala, canta. Aqui o querer é sincero, o ilhéu se preocupa com o problema do próximo sem pedir nada em troca. O verdadeiro ilhéu tem um orgulho desgraçado dessa ilha e dispensa o tratamento de "tchê." Florianópolis está mudando – o progresso é irreversível – menos, graças a Deus, à conduta e ao humor do nosso povo.
Aqui,visitantes de todas as tribos,mesmo aqueles que vieram para ficar,são bem vindos,elevando,é bem verdade, a pequena cidade à caminho de uma metrópole. Mas o manezinho no fundo, no fundo, não é feliz com esse progresso desenfreado. Considerando as características já enumeradas, apesar de tudo, o ilhéu pode responder que é feliz. E tem certeza disso.
O ilhéu, a cidade antiga e a cidade nova se compreendem mutuamente. Essa eterna relação de amizade é que faz com que a sua gente se sinta feliz, como as demais gentes que aqui aportam em busca de ventos alvissareiros. E quanta gente quer ficar e não pode?
Sabem, esta noite quero sonhar. Sonhar que a terra tremeu. Sonhar que a fantástica Ilha afastou-se do continente, flutuando pelos mares do sul, de mãos dadas com a Ponte Hercílio Luz, restaurada, majestosa. Quero, então,subir ao Morro da Cruz e berrar aos quatro ventos: "Quem entrou na Ilha entrou. Quem não entrou não entra mais. Adeus,adeus Brasil!"
Pois é,o ilhéu é tudo isso e mais aquilo.
Sou ilhéu, graças a Deus!
Nota: Respeitado o texto publicado no Guia de Ruas de Florianópolis, PMF/IPUF -EDEME,2000