Tela para escrever
Imagine-se um homem debruçado sobre a escrivaninha, preparando-se para escrever.
Vale-se de uma caneta de “época”, um bico-de-pena mergulhado num tosco tinteiro. Para alumiar a bancada, um lampião a óleo de baleia, como nas mais antigas armações do mundo.
Quem seria? O poeta Shelley, com seus versos marinheiros?
Hermann Melville, iniciando a saga da obsessiva perseguição do capitão Ahab à baleia Moby Dick, um clássico da literatura universal?
Quando o homem começa a escrever, opera-se um pequeno milagre de forma e de método: suas marinhas não se derramam em pinceladas coloridas, mas em letras de caligrafia redonda.
E, no entanto, sua pena não é mais uma caneta. Num lance de abracadabra, a pena se transforma num pincel…
Ninguém diria que aquele senhor de testa alta e bigode luso, embrulhado num vetusto terno, colarinhos pontudos e gravata em laçarote fosse o mesmo marinheiro em calças de zuarte e camisas zebradas, a bordo do navio argentino Mercedes ou do inglês Theodore, a singrar os sete mares.
Em 1876, o ilhéu Virgílio dos Reis Várzea matriculou-se, aos 13 anos, na Escola Naval do Rio de Janeiro, dela saindo aos 16, para correr o mundo, do Cabo Horn às Antilhas, do Atlântico ao Índico e ao Pacífico, com passagens pelos Açores e pelos também lusófonos Arquipélagos do Cabo Verde.
Esse verdadeiro Mestre dos Mares haveria de se transformar num “Mestre das Letras”, ao retornar à sua Desterro em 1881 e tornar-se amigo e empreendedor literário, em parceria com João da Cruz e Sousa. Os dois passaram a editar, em sociedade, os “jornaizinhos” Colombo e Tribuna Popular, baluartes da causa abolicionista.
Dono de uma obra imortal, Traços Azuis (1884, poesia), Tropos e Fantasias (prosa, 1885, com Cruz e Sousa), O Brigue Flibusteiro e Os Argonautas (contos, 1904 e 1909), entre outros textos relevantes, Virgílio Várzea deixou de presente para a Ilha de Santa Catarina uma espécie de memorial descritivo, em que o escritor “pincela” as praias, as enseadas, os promontórios, as freguesias e as lagoas, os altiplanos e os baixios – num livro que é, ao mesmo tempo, um “quadro” e uma “carta”, num estilo que se poderia caracterizar como “prosa-pictórica”.
Em 1900, aos 37 anos, Virgílio Várzea “pinta” A Ilha com aquele amor dos que a tiveram por berço e âncora – despido da habitual modéstia dos seus nativos:
– Poucos lugares do globo possuirão praias tão bonitas e de um desenho mais interessante e caprichoso como os da costa catarinense – preliba, antes de seu hino de amor à Ilha.
Majestade e grandeza viviam na alma de Várzea, amigo dos seus amigos. É ao amigo “marinheiro” que recorre um desesperado Cruz e Sousa, escrevendo-lhe do Rio de Janeiro, onde, em vão, “espera sem fim por acessos na vida, que nunca chegam”.
“Estou profundamente mal, e só tenho a minha família, só te tenho a ti e a tua belíssima família (…) Só dessa linda falange de afeições me aflige estar longe, e por isso morro, sim, de saudades.”
O sufocado verão que se instalou na Ilha, nestes primeiros dias de janeiro, homenageia, apesar das carrancas da natureza, o magnífico aquarelista, de alma marinheira e caráter nobre, destituído de qualquer salitre.
Virgílio Várzea, o marinheiro que escrevia com um “pincel” na mão.
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-
Imagem: do autor
Crônica,publicada originalmente no jornal Diário Catarinense,na coluna do Autor e aqui inserida com a autorização expressa do mesmo.