[Viajantes ]
“Eis que, passados alguns dias após a nossa chegada, nos deparámos com os folklíricos, a mais curiosa espécie das Ilhas.”
Quem assim escreve (ressalvando-se, embora, os tropeços da tradução) é o Capitão John B. Walkman (pseudónimo, aliás, de Anthony Higgins), autor desse estranho e extravagante livro, A Happy Summer in the Azores, em que entendeu deixar registo da sua passagem por algumas ilhas do arquipélago, a bordo do Seamaster.
Das razões e espantos do Capitão, erudito em demasia para a patente que ostentava, não cuidará aqui o leitor e talvez faça mesmo por esquecer alguma sobranceria com que, às vezes, esta escrita nos olha; mas não deixará de anotar o intuito estilizador de Walkman, a tendência para alegorizar-nos a História e os seus fantasmas:
“Os folklíricos chegaram com os primeiros colonos. Desembarcaram trazendo na bagagem o enorme arsenal da paz construída já sobre os mortos do futuro. Depois, através dos tempos, revelaram-se de uma importância incalculável no processo de contra-subversão levado a cabo na História destes lugares: nos anos de seca, quando o mar se atirava à terra ou as montanhas subvertidamente vermelhas se derramavam sobre as gentes, eles sentavam-se, Missionários da Ordem, lendo poemas importados, declamando literaturas mais que duvidosas às multidões que, rebentando de fome e de rezas não ouvidas, se deixavam entontecer até ao sono.”
Não voltou John Walkman a dispor de outro feliz Verão como esse nos Açores. A morte atalhou-lhe o passo na Primavera seguinte, numa tarde em que levava à tipografia as provas revistas do seu livro. Nunca pôde, por isso, saber em que medida o nosso olhar se reconheceria ou não no olhar que sobre nós lançou.
(Algumas das Cidades, 1995)