A citação com que inicio o meu comentário ao texto de Teolinda Gersão é um discurso indireto do outro teclado. Numa revista de consultório de dentista uma escritora coloca a questão que confere significado a’Os teclados, ou seja, será possível poder falar-se da morte do leitor de determinados autores? É claro que depois da morte do autor, colocar uma questão assim pode significar a obtenção de uma sentença de culpa.
No entanto, apercebo-me que essa provocação d’Os teclados pode ajudar-me a estabelecer um diálogo com um ensaio de 1936, “The work of art in the age of mechanical reproduction” da autoria de Walter Benjamin. Deste texto seminal interessam-me duas ideias desenvolvidas pelo seu autor: Como perceber a irrevogável fonte realista de uma obra de arte? E como pensar os modos de apropriação do objeto de arte? Em relação à primeira questão, ao comparar o nível de intervenção no real por parte das duplas históricas mágico/ médico e pintor/ fotógrafo, Benjamin conclui que o homem da câmara “penetrates deeply into its web,” o que permite uma libertação do equipamento, isolando-se o real; sendo que o trabalho do fotógrafo deixa de abarcar o total ambicionado pelo pintor, passando a representação a ser organizada a partir de “múltiplos fragmentos reunidos sob uma nova lei” (45). No que respeita os modos de apropriação da arte pelo público-leitor, Benjamin discute a antinomia entre “concentrar” e “distrair” também descrita no duo verbal “ficar absorto por” e “absorver” diretamente, ou seja, fala do peso da distração do homem moderno que absorve imagens em movimento, por oposição a um público implicado na relação de comunicação artística que estaria disposto a ficar “absorto por.” E estou consciente do desafio de tradução que lanço a dicionários de língua portuguesa que referem o caráter passivo de se estar “absorto(-a).”
Benjamin, em vésperas da segunda guerra mundial, alerta então para o facto de que “the film is allowing the public [to become] an examiner, but an absent minded one” (49). Se essa hipótese se confirma, pode bem ser que Júlia e a outra d’Os teclados pretendam redimir o público-leitor dos nossos dias, um público descendente do de 1936, para um projeto de redescoberta de sentido pela busca da harmonia e do tom das imagens visuais e acústicas em constante movimento; em última análise, porque o desespero decorrente das situações desarmonizadas não parece compatível com o desejo de felicidade pessoal desta Júlia, uma menina que não abdica de ser feliz. Quanto à outra do outro teclado, Júlia acha que decerto ser-lhe-á mais fácil manter-se indiferente à zombificação do mundo, à demissão do leitor-receptor de cumprir o contrato com a voz, uma vez que a outra tem uma vida pessoal, família, um cão e um jardim!
Mas Os teclados também é um texto que se constitui como uma reflexão em tons suaves acerca da formação de uma personalidade criativa. Aqui suavidade não é sinónimo de fragilidade, é-o de resistência e de resiliência; isto é, a afirmação do grito silencioso que diz a pertinência de se pensar o processo artístico, musical e literário, a partir de uma voz que não abdicou da existência. Júlia, a protagonista desta novela, é uma adolescente que progride de uma situação de mera intérprete na direção da busca de um sentido de autoria, porque de autoridade; mesmo que conclua: “O universo esvaziara-se de sentido, o mundo perdera a transcendência. Não existia milagre em parte nenhuma” (94).
A opção pelo sub-género novela permite acompanhar o percurso individual de Júlia, no sentido em que ao longo das noventa e cinco páginas se cumpre um destino de género; isto é, a novela, pela sua moderação estrutural, suporta bem as marcas femininas desta escrita. O discurso de Júlia nasce do que vivencia e presenceia em casa, dos diálogos assimétricos impostos pelo tio Octávio sobre ela própria, a tia Isaura, Armênia, ou o louco tio Eurico. São relações que conduzem Júlia a determinadas estratégias de sobrevivência: a opção pelo silêncio em relação à agressividade verbal do tio, o recolhimento face à manifestação épica de certos egos masculinos, a persistência recatada na prossecução do seu projeto de formação, ou a necessidade de circular entre a beleza e o entretenimento como estratégia de sobrevivência.
O tom como conceito-chave comum à música e à escrita é referido de forma recorrente; o desta narrativa define-se na resistência silenciosa à desarmonia familiar e social, mas também na recusa da passividade face ao desencanto. Num tempo anterior ao da narração Júlia enceta um percurso musical e pessoal a partir das situações vivenciadas em casa dos tios. Enquanto menina, Júlia aproxima-se e afasta-se do estereótipo burguês de um Portugal à espera do 25 de Abril. Vive num ambiente desconcertante, em consequência da fricção entre a necessidade do bem parecer tão cara à classe média portuguesa e uma agressividade latente decorrente da presença incómoda de um louco tio Eu, Eurico. Em casa dos tios o discurso e os sons musicais confirmam de forma repetida o difícil descompasso entre Octávio e Isaura. Afinal, a tia Isaura aprendera a tocar apenas para arranjar marido, enquanto o tio Octávio, muitos anos depois, ainda mantinha o eros musical de outros tempos. Nesta casa, as mulheres e o tio Eu são relegados para uma posição de subalternidade sob a batuta de um tio Oitavo insignificante, segundo Júlia. Todas as conquistas femininas são lentas. A tia tem de discutir muito para conseguir os seus intentos, e Eurico é mesmo o prolongamento de uma dependência do corpo feminino, reiteradamente protegido pela irmã e pela sobrinha.
No decurso do processo de amadurecimento de Júlia foram essenciais determinados incidentes, segundo a narradora. Em primeiro lugar a preponderância do silêncio como capacidade de harmonizar os sons, “Movimentos mecânicos como os de uma bailarina. A perfeição sem erros, como uma máquina sem falhas […] Também a primavera era mecânica, o abrir das flores e o bater das ondas” (67). Por outro lado, as pessoas exteriores ao núcleo familiar facilitam o processo de socialização da protagonista, servindo também para que se demarque da tradicional educação musical, dirigida ao entretenimento. Os encontros com Ireninha e Lúcia permitem que evolua num sentido diverso, apesar de se questionar em relação à sua aspiração de felicidade individual, que passa também pelas férias, a moda, as amizades. Até que um dia tudo começa a fazer sentido para Júlia. O professor de Matemática, de forma quase distraída, apresenta a chave a Júlia quando lhe fala da importância do número na passagem do caos ao cosmos, “O cosmos era o universo ordenado, regido por leis e princípios inteligíveis aos homens. Através de uma regra interior, o número escapava ao acaso” (72).
Após esse momento de certa forma iniciático a morte inesperada do professor de Matemática assinala a emergência da adultez de Júlia, a consciência da busca de sentido para se encontrar o tom – apesar de – na vida e na arte.
(texto inédito)
Irene Amaral
University of Massachusetts Dartmouth
January 2010
Irene de Amaral é licenciada em Ensino de Português e Francês pela Universidade dos Açores e possui um mestrado em Supervisão, na especialidade do ensino de Português, pela Universidade de Aveiro. Actualmente frequenta o curso de doutoramento em Estudos Luso-Afro-Brasileiros na University of Massachusetts – Dartmouth, Estados Unidos da América. Exerceu as actividades de docência e de gestão escolar no contexto do ensino secundário na Região Autónoma dos Açores entre 1989 e 1999. Desde 2001 tem leccionado a disciplina de Português Língua Estrangeira ao nível do ensino pós-secundário nos Estados Unidos e dedica-se, em regíme de voluntariado, ao acompanhamento da elaboração de materiais de apoio ao ensino de Português na América do Norte.