Terceira,
a heróica e histórica ilha
Estou no Pico das Cruzinhas, repouso o olhar no Monte Brasil e tenho todo o mundo em volta.
A Terceira (dizem que a 3ª ilha a ser achada) entranha-se-me teluricamente e é a hospitalidade da porta aberta e luz acesa. Nela vivi os melhores 10 anos da minha vida. Gosto incondicionalmente do temperamento lúdico e dionisíaco dos terceirenses. Aliás, não conheço povo mais exuberante, sociável, festivo e festeiro e que assim se manifesta: uma aficion taurina à escala mundial, sendo que a tourada à corda (uma forma de tauromaquia popular única no mundo) é a festa coletiva da Terceira; o brilho das festividades do Espírito Santo; o despique das cantorias; a comicidade hilariante dos bailinhos de Carnaval; o frémito das Sanjoaninas e das Festas da Praia, e tudo o que sejam eventos profanos e religiosos. O que o terceirense quer é festa!
Tenho também grande apreço pelas mulheres da Terceira que são afoitas e literalmente bonitas. A propósito, Raul Brandão sabia o que dizia quando, em 1924, escreveu: “Foi aqui que vi as mais lindas figuras de mulheres dos Açores – tipos peninsulares, de cabelos negros e olhos negros retintos” (As Ilhas Desconhecidas).
A Terceira é um velho reduto histórico com dois centros urbanos: Angra do Heroísmo e Praia da Vitória. E bem que poderia ser chamada a ilha dos monumentos e dos cronistas, já que foi ali que se escreveram capítulos particularmente importantes da história do arquipélago e de Portugal.
Sentinela de atalaia, Angra, “cabeça e corte das mais ilhas” (no dizer de Gaspar Frutuoso), foi a primeira povoação nas ilhas dos Açores a ser elevada a cidade (1534), por alvará do rei D. João III. E, bem vistas as coisas, foi também a primeira cidade europeia do Atlântico.
Sede do bispado, Angra é o espanto do seu traçado regular de ruas e praças que desembocam no Pátio de Alfândega – uma malha urbana que se antecipou ao traçado pombalino da Baixa de Lisboa. E, urbe de cunho senhorial, cujo traçado urbanístico provém do século XVI, foi durante três séculos o ponto de cruzamento entre a Europa, a África e as Américas. Isto justificou a criação da Provedoria das Armadas em 1527. As armadas regressavam da India e procuravam naquele desvio a segurança das suas cargas. Mais tarde Angra foi sede da Capitania-Geral dos Açores (1766), e foi ainda nesta cidade que se instalou o Corregedor das Ilhas e o Provedor da Fazenda e da Prefeitura dos Açores.
As fortalezas, os conventos, as igrejas, os palácios e os solares têm uma irradiação pessoal que testemunha o passado ilustre de Angra. Nesta atmosfera sente-se um laivo de exotismo que evoca antigos cargueiros vindos da Ásia ali ancorados.
“Muito Nobre, Leal e Sempre Constante”, lhe chamou Almeida Garrett num decreto armorial que Passos Manuel lhe encomendou. A Angra foi acrescentado “do Heroísmo”, em resultado de uma longa resistência: a Terceira resistiu às pretensões de Filipe II de Espanha, e, mais tarde, desempenhou ação importante no triunfo do liberalismo. “Aqui já foi só Portugal”. E foi toda esta carga histórica e o seu significado na expansão europeia que levou com que esta cidade fosse incluída, a 7 de dezembro de 1983, na lista do Património Mundial, Cultural e Natural da UNESCO, após uma notável recuperação arquitetónica na sequência do sismo de 1 de janeiro de 1980, que arrasou a Terceira.
Comecemos por fazer uma caminhada pelas ruas de Angra do Heroísmo. Apreciemos as casas de bela traça renascentista, com suas cantarias, varandas corridas, janelas de portada ou de guilhotina, os belos beirais e os frisos perfeitos. Visitemos de seguida o Jardim Público Duque da Terceira – vegetação luxuriante e pulmão da cidade. Depois façamos rumo à maior fortaleza do Atlântico: a de São João Baptista, construída no sopé do Monte Brasil, obra-prima de engenharia militar edificada por espanhóis no tempo da ocupação filipina, então com o nome de Forte de São Filipe.
Numa volta à ilha veremos as quintas solarengas e frondosas de São Carlos, os alegremente coloridos “impérios” do Espírito Santo, a nobreza rural de muitas das habitações espalhadas pelas 30 freguesias. Ilha agropecuária (onde há mais vacas que pessoas…), terra de festança, de comidas e bebidas a rodos (viva o 5º toiro…), aqui se come a melhor carne dos Açores.
Pelo caminho deparamos com terras lavradias quadriculadas em “cerrados” e vastas pastagens. As cerca de 20 ganadarias (com cerca de 2.500 cabeças de gado bravo) existentes na ilha são autênticas reservas biológicas, pois, segundo os entendidos, sem essas ganadarias a Terceira não possuiria as manchas endémicas que hoje ostenta.
Impõe-se agora uma visita demorada à ampla e fértil planície do Ramo Grande e ao centro histórico da cidade da Praia da Vitória, “mui notável” em honra da vitória obtida sobre a armada miguelista, em 1829. Estamos na Pátria de Vitorino Nemésio – a belíssima igreja Matriz, a enorme baía, o imenso areal, a marina, o porto de recreio e um complexo portuário e industrial apetrechado para servir a ilha e as restantes do grupo central, a que modernamente chamaram Porto Oceânico. E a cultura mora mesmo ali ao lado: a casa onde nasceu Nemésio, hoje espaço museológico; a Casa das Tias do escritor (com 10 janelas e uma longa varanda da fachada); e um belíssimo Auditório (inaugurado em 2003), com diversas valências.
Lugar de chegadas e partidas, aqui se localiza uma das mais importantes plataformas aéreas: o aeroporto das Lajes, com pistas que servem, em simultâneo, as aviações comercial e militar, já que ali está instalada uma base militar portuguesa e outra norte-americana. A presença desta última, desde a década de 40 do século passado, marcou decisivamente a vida social, económica, cultural e musical da Terceira.
Continuemos a nossa viagem com as seguintes paragens obrigatórias: Algar do Carvão (resultante do recuo de lava no interior de uma chaminé basáltica), Serra do Cume (a mais vasta caldeira dos Açores e um regalo para o olhar), Serra de Santa Bárbara (que integra a maior concentração de vegetação endémica da Terceira e cujo cume é o ponto mais alto da ilha com 1022 metros de altitude), Lagoa do Negro (antigo bebedoiro para o gado, com vários ecossistemas lacustres), Furnas do Enxofre (um campo fumarólico situado no cruzamento de imponentes falhas geológicas). E convirá não esquecer a Lagoa das Patas, a Caldeira de Guilherme Moniz, a Serra do Morião e a Mata da Serreta. É também imprescindível contemplar a maior mancha contínua de plantação de vinha que abrange a área dos Biscoitos, e ali aproveitar para beber o vinho generoso da amizade.
Reserve o dia seguinte para visitar as igrejas da Misericórdia (1492), da Sé (1570) e do Colégio (1638), bem como o Museu de Angra (a funcionar num imóvel típico da arquitetura conventual portuguesa do século XVI) e o Teatro Angrense (inaugurado em 1860, apresentando na sua fachada influências neoclássicas). Afinal de contas estamos na capital cultural dos Açores…
E por tudo o que acima referi, fique o leitor com esta certeza: a Terceira não é ilha para viajantes apressados…
Victor Rui Dores