Em Tercetos queimados, Sérgio Nazar David regressa ao poema com um novo fulgor oficinal e temático. Sabiamente destilada, a sua poética define-se por uma acesa contenção e pela dessacralização do discurso estético pomposo. O prosaísmo arranhado é máscara de um caminho literário no qual reina uma apoteose do insignificante, como a definiu Robert Browning, nascendo o sopro criativo do poder do mínimo, de uma despersonalização dramática que permite uma proximidade de assuntos como a memória e o esquecimento, o desejo e a imaginação, a infância, os afectos e o erotismo, a escrita-eu arrancada aos papiros de uma linguagem ecléctica.
Não se trata de uma visão meramente hedonística, a sua, ainda que esta seja incorporada sem ilusões ou preconceitos. O sentido do poema pode passar por um tópico surgido de um lugar estranho ou oculto (um aquário, um teclado, o pelo de um cão e de ursos antárcticos) ou por matéria lírica, épica e mítica, como se o autor fosse o sobrevivente de uma época passada em relação à qual as suas raízes libanesas prevalecem tal como a Alexandria de Cavafy.
A memória surge aqui como acidente fragmentário, sendo a sua biografia (ficcional, como todas são) marcada pelo rei David, que atravessa, enquanto sinal, os Tercetos queimados. Neles, a experiência é uma interrogação de autenticidade secreta, Ítaca diária de teatralidade subtil: «O perdão do Pai / tiveste-o não do arrependimento, / não para que triunfe o amor, / mas por que se veja e escreva / que não há felicidade longe do que se é. / Assim seja, / por aceitares o trono de Israel / e o coração de Betsabá / sem uma pergunta sequer. / Chegaste enfim à infância.» («David»).
Tercetos queimados tem uma genesíaca entrada, a do poema «O Som», som primordial, princípio de tudo antes do Verbo. Bela poética musical que transforma o livro, de modo pitagórico, numa corda vibrante. Esboçadas ficam logo as temáticas que percorrem a obra: o tempo, a solidão, a incomunicabilidade, a paixão. Eis como se apresenta este primeiro andamento em que o pai é, como noutros versos, leitmotiv, transformado agora em filho numa tocante e inversa Pietà: «Gostava tanto que chegasse / logo o dia em que eu pudesse ver-te como eras / no início do mundo» («Mito»).
Não só Beirute ou o Cairo atravessam esta obra. Lisboa, «cacto dentro d’água», amorosa e literária, é personagem central do segundo andamento de Tercetos. Vemo-la desfilar desesperançada mas amada, citacional, nostálgica de um Garrett sentimental e justo ou de um Camões resgatado para hoje, segunda casa de um poeta que diz: penso (não é pouco) mas já não existo a não ser nas «sandálias de Deus» («A Mão Maior», poema que abre o ciclo libanês em que abunda uma narratividade poética pungente).
Poderíamos começar a ler os textos libaneses (terceiro andamento) pelo fim, momento em que, nestes contos-miniatura, a poesia brota com voluptuosidade nostálgica: «Pedi-lhe um dia que cantasse – / Homero riscando a sua Ilíada – o que cantara / à Santa por salvar meu pai. A promessa / em árabe antigo e rude encheu o quarto. / Caminhos íngremes fizemos – lágrima, / lâmina, súplica – até chegar ao poema» («Febre»). O quarto andamento, o do poema-pedra, reflecte sobre a escrita que, de modo inusitado e impuro, se intromete nas ruínas lançadas aos nossos pés. Nessa sombra, o autor dá-se, sendo as suas palavras «ritmo, rastro, fosso / sem fim, sem fio; muro sem tijolo vento / rota braço – erguido rente ao corpo.» («A Língua»).
Ana Marques Gastão
Lisboa, 12-02-2014
Sobre a Autora do Ensaio:
Ana Marques Gastão (n. 1962, Lisboa, Portugal) é poeta, jornalista cultural, ensaísta e crítica literária. Advogada, licenciada pela Universidade Católica Portuguesa ,Faculdade de Ciências Humanas .
Autora de Tempo de Morrer, Tempo para Viver (1998) , Terra sem Mãe (2000), Três Vezes Deus, em co-autoria com António Rego Chaves e Armando Silva Carvalho (2001), Nocturnos(2002) e Nós/Nudos (2004), 25 poemas sobre obras de Paula Rego foi galardoado com o Prémio Pen Clube 2004 e Lápis Mínimo (2008). Editou no Brasil a antologia A Definição da Noite (2003).
Colabora como cronista nas revistas. Integra várias antologias e tem representado Portugal em diversos eventos internacionais.