(…cont.)
Passados uns tempos, recebeu a notícia de que o rapaz se havia mudado para o Canadá. Através de emigrantes conhecidos, soube que se encontrava bem, mas não estava disposto a reatar relações. O sentimento de culpa deu-lhe cabo dos nervos e começou a andar quezilento no serviço. Confrontado com a obrigação de usar capacete nas obras, respondeu de forma desassombrada: “Se acontecer alguma coisa, o problema é meu!” Não foram em cantigas: ou cumpria as regras de segurança, por causa do seguro, ou era despedido. Teimoso que nem um jumento, virou-lhes as costas e foi à procura de outro emprego.
– Yá, aquilo é uma terra – esclareceu João Caracol – de gente amedrontada com o seguro. Se não limpas o snó[1] à frente da tua casa, tu é que és responsável se alguém escorregar e partir uma perna. Quem não tiver seguro, arrota com o dinheiro todo para as despesas. You see? Aqui é que estou bem e sossegadinho da minha vida.
O eco da última frase pesou-lhe na consciência. Depois de uma breve pausa, achou por bem remediar:
– Tenho pena de lá ter deixado o meu filho, mas ainda não perdi a esperança de o abraçar.
Nos primeiros dias, João Caracol andava eufórico. “Até parece meio aloicado”, comentou tia Luísa. Correu as canadas todas, guindou paredes dos cerrados para sentir o cheiro da bosta de rês e do marrôlho, encheu o peito de ar em cima da rocha, abraçou os respingos da maresia, comeu lapas com pão de milho, bebeu vinho de cheiro e leite fresco das vacas. Depois de matar as saudades, voltou a ficar impaciente. Era um estar e não estar, sem solução à vista.
O regresso ao berço materno, se não foi uma decepção completa, não correspondeu todavia ao devaneio arquitectado. Consciente ou inconscientemente, desejava que o mundo tivesse parado no tempo. Havia guardado uma imagem cristalizada da freguesia e nela imaginara a sua integração. Sonhara com uma recepção calorosa e com uma posição de destaque, com direito a tratamento especial. O seu desafogo económico colocá-lo-ia ao lado dos homens socialmente bem instalados, a quem se pediam opiniões sobre os assuntos mais importantes da vida em comunidade.
Sonhos e sonhos que se esvaziaram pelo fundo da ribeira. O vestuário excêntrico não apagou a figura de um João Caracol roto e de pé descalço, antes de abalar. Apesar de bem recebido e acarinhado, entre um misto de inveja e admiração, dificilmente ultrapassou os estigmas da infância ou aceitou as mudanças ocorridas em pouco mais de vinte anos.
– Afinal, estou a ver que isto aqui está quase como na América. O respeito já não é como antigamente e até já vi por aí uns cabeludos. You see?
Uma cabeça desajustada na cova do travesseiro. Uns dias, botava discurso a colocar a América nos píncaros da lua; noutros, para se convencer, vincava bem o descontentamento perante uma sociedade tão estranha.
– Xôa[1], ganha-se dinheiro, mas perde-se coiro e cabelo. Nem dão tempo para respirar. Aquilo é gente diferente da nossa, com outra maneira de pensar, que só vê dólares e cêntimos à frente do nariz. Tinha a frisa[2] cheia de tudo o que era preciso, tinha talaveja[3], uma casa (alugada), com tudo do bom e do melhor, e um carro (em segunda mão), mas o meu coração rebentava, morto de saudades.
Nas farmácias não havia analgésico que lhe amainasse as dores da distância. Após a saída do rapaz, só aguentou mais um ano. Carregado de remorsos e dominado pela neurose, implicava com toda a gente. Com medo de perder a filha, passou a assumir um controlo obsessivo. A sua mentalidade, forjada num meio pequeno, não se adequava ao comportamento da rapariga, nada e criada numa terra repleta de solicitações. Antes que se desencaminhasse, aproveitou a altura mais favorável e decidiu voltar, com a esperança de lhe arranjar um namoro à moda da terra.
Para o mundo, exibiu as posses com algumas extravagâncias pouco habituais; pelo seu interior, vagueava como uma mosca tonta, perdido nos meandros da infelicidade. Tio Jerónimo, para o animar, sugeriu que comprasse uns cerradinhos e criasse uns bezerros. A ideia agradou-lhe e falou com a mulher.
– Ó João, toma juízo nessa cabeça. Essa gente ainda vai pensar que viemos com uma mão atrás e a outra à frente.
Os outros, sempre os outros, fantasmas omnipresentes, vigilantes e vigiados. “O mal desta gente, o mal desta terra…”, dizia tio José Carrapito. Só a sua astúcia foi capaz de dar a volta aos preconceitos de Conceição:
– Quem fez uma casa como a de vocês e leva a vida que vocês levam, já deu muito que falar. Mas se João comprar umas terrinhas… nem queiras saber a inveja que vai correr por essas canadas. Hoje em dia, quem não tem terra não vale nada. Ele não vai trabalhar por necessidade, é só para matar o tempo.
Passados uns meses, lá andava João atrás dos bezerros a dar-lhes corda e a acartar água para beberem. O Morcela acompanhou-o com frequência, puxando-lhe pela língua. E João nutria por ele um carinho especial, por lhe lembrar o Luciano. Falava-lhe de coração aberto, como nunca falara com o filho. Miudinho nos relatos, perspicaz nas conclusões, e a América tornou-se para o Morcela um fascínio. Ali, sim, valia a pena ser chofer de praça.
– Tanta bazófia quando chegou, para andar agora a criar bezerros. Pelos vistos, o dinheirinho ardeu depressa como um fósforo – voltou a morder tia Luísa.
João Caracol pouco se importou com as opiniões alheias. Sentava-se na parede do cerrado a ver os animais crescerem e a falar sozinho, horas seguidas. Mas nunca verteu uma lágrima. O pior que lhe podia acontecer era sentir que o alívio lhe escorria pela face como quem expulsa o demónio do corpo. Esse demónio ou essa cruz haveria de carregá-los pela vida fora para resgatar a sua culpa.
“Vai-te embora, desampara-me a porta”, uma imagem que Conceição jamais esmoeu. Embora continuasse com a alma dorida, deu mais facilmente a volta por cima ao desgosto. Se Luciano tivesse decidido sair de casa por vontade própria, com a vida encarreirada, o caso mudava de figura. Para isso, estava ela preparada como qualquer mãe. Mas não. Fora pontapeado como quem bota um cachorro na rua. Procurava enganar o sofrimento, entretendo-se com as lides da casa e saboreando todos os momentos de convívio com as amigas. Conversas que acabavam em chacota por causa das suas interjeições. Sempre que debitava um Xôa, lá vinha a censura: “Ah, mulher, pára de enxotar galinhas.”
Sem dar o braço a torcer, tia Mariana foi cozinhando uma inveja bolorenta, em relação à vida faustosa de Conceição. Não se conformava que uma pindérica regressasse com um pecúlio folgado e sinais exteriores de riqueza bem evidentes. Havia de ter uma casa moderna como a dela e começou por substituir os móveis da sala. Um homem da cidade, com lábia de cigano expedito, conseguiu endrominá-la em meia dúzia de adjectivos sonantes. Levou a mobília do meio-da-casa (canapé, mesa e quatro cadeiras de palhinha) e dois pratos antigos, da avó. Em troca, recebeu um sofá, duas poltronas e um candeeiro de pé alto, em latão reluzente, com um abat-jour num tecido adamascado, cheio de franjas e lacinhos. Tudo em segunda mão, “mas
estão como novos”, afirmava para conter a revolta do marido.
“Esta mobília está a pedir outras cortinas…” E a seguir às cortinas, vinham os tapetes, o frigorífico ou a casa de banho. Um delírio, encasquetado no juízo, que não foi além da imaginação. Depois de somar as parcelas todas, acaçapou-se para não fazer figura de tola. Lá no íntimo, zurzia nas orelhas do homem por não ter plantado a árvore das patacas. E ele ria-se, que nem um perdido, com tanta presunção balofa: “A fidalga quer uma casa de banho!… O traseiro já não lhe cabe na retrete!…”
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O AUTOR
Carlos Enes nasceu na Vila Nova, Ilha Terceira. Professor de História no Ensino Secundário, desde 1978, exerceu também funções docentes na Universidade Eduardo Mondlane (1981-84), Maputo, e na Universidade Aberta (1996-2003), Lisboa. Mestre em História Contemporânea (1993), pela Universidade Nova de Lisboa, tem-se dedicado à investigação da história açoriana, com vários livros e artigos publicados, colaboração abundante na Enciclopédia Açoriana e realização de palestras em diversificados. É autor do romance Terra do Bravo.
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DEPOIMENTOS sobre Terra do Bravo
“A Memória de uma geração”
(…) Contada à volta duma personagem conhecida por Morcela – um rapazinho que foi aprendendo a vida e as suas coisas da maneira como a aprenderam, nas freguesias rurais da nossa ilha, aqueles que hoje andam pelos 50 e tal anos -, a história da Terra do Bravo é uma espécie de mosaico de pequenas histórias pessoais, de pessoas vulgares, que nasceram e vivem numa freguesia tradicional da ilha Terceira, e cujo percurso de vida acompanhamos. Ler este romance é como se víssemos um filme da nossa vida, mas um filme que guardasse, para além das pessoas, das suas relações, e dos acontecimentos a que assistem ou em que participam – os cheiros, os sabores e os sons que deram forma à nossa infância e adolescência”.
Luís Fagundes Duarte, professor universitário
” Se houvesse a pretensão de destacar uma tese, constataríamos que, para Morcela ser, foi necessário encontrar as suas raízes liberais, que lhe vinham geneticamente dos antepassados do pai, destacados na luta liberal, e culturalmente descobertas como uma quase revelação na Dança de Entrudo cujo enredo enaltecia a figura heróica de Teotónio Bruges. Esse valor do Liberalismo e todo o historial de luta pelos ideais, pela mudança, pelo não conformismo são, afinal, em Morcela, os núcleos da sua identidade própria. Um ilhéu inconformado com os limites físicos, políticos, sociais e íntimos.”
Elisa Gomes da Torre, professor universitária
“Não queremos deixar de chamar a atenção para o facto, deveras singular, de Ribeira de Fogo, enquanto freguesia, figurar-se no romance de Carlos Enes como uma verdadeira personagem colectiva, tanto dotada de personalidade própria quanto desencadeadora ou inibidora de acção alheia. A freguesia, por si, enquanto personagem, não age, mas a descrição da presença da sua atmosfera muda e fechada, microcosmo cerrado de coacção social e repressão política, força a reacção das outras personagens, seja individualmente, alterando-lhes o estado anímico, pervertendo-lhes a personalidade, seja colectivamente, criando a atmosfera geral propícia ao desencadeamento de acções patológicas de violência moral (a bufaria, a bisbilhotice de Luísa, a repressão sobre o “estranho”, vindo da América ou vindo de Lisboa, a fuga de Filomena). Neste romance, o espaço freguesia não se estatui como um espaço ficcional neutro, mas, diferentemente, como o elemento vital propiciador do enredo que move a totalidade do romance.”
JORNAL DE SINTRA
Luís Martins o escritor Miguel Real, já galardoado, e ensaista
Filomena Oliveira profesora e escritora
” Apesar de o registo histórico e o estilo literário se distanciarem na sua génese, não se pode esquecer o contributo inequívoco que a literatura presta na preservação da memória de uma época, num determinado lugar. Terra do Bravo ilustra, deste modo, conflitos ideológicos e políticos vividos nas ilhas, nas longas décadas do regime salazarista, recorrendo o escritor a fontes oficiais para organizar o lastro de referências que servirão de suporte à recriação dos acontecimentos narrados.”
Leocádia Regalo, apresentação do livro na Casa dos Açores em Lisboa
Boletim do Núcleo Cultural da Horta, nº 15, 2006
[1] Snow – neve
[1] Sure – claro, certamente
[2] Freezer – congelador, frigorífico
[3] Television – televisão