Terceira Terra de Bravos / Terceira Land of the Brave, com Texto de Daniel de Sá e Tradução de Chrys Chrystello e Fotografia de Nuno Sá, é uma obra identificada, segundo a lista das Publicações da Editora Ver Açor, sob cuja chancela é editada, como “guia dos Açores”. Guias, porém, tradicionalmente evocam livros com textos essencialmente descritivos e com fotografias geralmente predizíveis e nem sempre em harmonia com os textos que as acompanham.
E depois há daqueles livros raros que, sem pretensões a constituírem-se história, são capazes, através de selecções criteriosas, evocar a história dum povo, deixando a critério do leitor o preenchimento dos espaços menos preenchidos que qualquer história sempre deixa e até requer; livros que sabem conjugar o mais nobre sem descurar, e até enobrecendo, o mais comezinho; que sabem incentivar o turista (que já conheça e o que nunca tenha estado lá) a visitar e a apreciar – pelo que dizem, pelo que não dizem e acima de tudo pelo como dizem. É como selecção de momentos captáveis pela escrita e pelo fotografia, como capacidade de abranger centenas de anos de história e milhares de pré-história e deles fazer uma síntese literariamente instrutiva e poética – no sentido de transfiguração e síntese estética da linguagem – que Terceira Terra de Bravos é, quando a mim, exemplar.
Um breve percurso pela sua tábua de matérias revelará o criterioso cuidado que presidiu à selecção e disposição do temário que integra o livro: “Elisa”, uma evocação pessoal, da parte do Autor, do seu primeiro encontro com a Terceira, desde logo plasmando o livro (um guia turístico, sob um prisma invulgar para tais obras: um prisma afectivo, pessoal); “Antes de Adão e Eva” é uma síntese da história geológica da Terceira, trecho no qual o Autor investe o tempo suficiente para, ao mesmo tempo, informar e sugerir, pois é um tempo em que poderia ser até perigoso alongar-se. A fotografia principal que ilustra esta sequência do livro contém uma legenda com sabor dum verso em prosa – “Da persistência do verde de plantas endémicas entre o amarelo dos musgos tingidos de enxofre, resulta um colorido fascinante, no coração da ilha”. Mas esta foto duma paisagem alimentada pela vulcanologia, que está na essência mesma da criação das Ilhas – é, no entanto, precedida por duas fotografias a meia página e uma mais reduzida, perfazendo três fotos de paisagem açoriana humanizada, pois as três contêm, num primeiro plano, um xadrez de cerrados verdes, tendo uma das fotos, ao fundo, um aglomerado humano bem à beirinha do mar. A legenda desta foto sintetiza o conteúdo – e, diria eu, a intenção – desta sequência de Terceira Terra de Bravos: “A harmonia perfeita entre a terra, as gentes e o mar.”
O mistério que ainda rodeia o nome Terceira é o tema central da sequência “Um nome acima de todos os nomes”, seguindo-se-lhe “Angra”, cuja foto (com certeza tirada do Monte Brasil) evoca, simultaneamente, a nobreza e afluência associadas à época gloriosa da cidade Património da Humanidade, mas ao mesmo tempo – sobretudo para um terceirense cujos olhos estão habituados às megalópoles da América do Norte – a poesia, a pequenez, a vulnerabilidade que, ao contrário de assustarem ou afastarem, convidam e atraem. As cores, que vão do verde da Natureza, ao azul claro da Misericórdia, ao ocre do monumento da Memória (que, independentemente do total em que se integra, pessoalmente sempre achei grostesco), no conjunto global desta, uma das mais belas paisagens urbanísticas dos Açores, até cobra, senão beleza, pelo menos indispensabilidade. As páginas de fotos de Angra que se seguem, com suas legendas que, não sendo nunca intrusivas, são sempre subtilmente instrutivas – chamam a atenção para locais exuberantes de história (“Aqui terá desembarcado Vasco da Gama…”), para outros a transbordar de história e beleza (“A igreja dos Jesuítas mantém todo o seu esplendor restaurado. O colégio adjacente foi transformado em residência dos capitães-generais…”), para o encontro entre história e a arquitectura; para o fluir da história e particularidades arquitectónicas da freguesia de São Pedro (sendo esta designação minha, não do Autor); para uma trecho de paisagem urbana onde mar e terra se encontram; para o que será sempre para qualquer terceirense a Praça Velha (apesar dos nomes oficiais que vieram sobrepor-se-lhe). Logo abaixo da foto da Praça Velha, mas em tamanho maior e em cores mais chamativas – das camisas e calças dos homens – uma foto de um grupo de terceirenses sentados num muro à beira mar: a presença humana que, anteriormente apresentada directa e indirectamente, ainda não tinha surgido em números muito significativos até agora. Valeria determo-nos nesta foto – para estudarmos a variedade de gestos, de disposições, de actividades, inclusive de teatralidades, captadas e congeladas. Aproximamo-nos do final da sequência sobre Angra “A Rua da Sé une Angra do Heroísmo em duas”, onde as tonalidades mais escuras ou mais claras dos telhados falam da tragédia que foi o terramoto de 1980 – sem que isso seja, ou precise, ser dito. Paisagens nocturnas e evocações de sismos, já prenunciados pelos dois tons do vermelho dos telhados, concluem esta, compreensivelmente a mais longa sequência de Terceira Terra de Bravos.
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