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“A fortaleza de S. João Baptista e o porto de Angra” prolongam a sequência “Angra”, ao mesmo tempo que se separa dela. É a história associada à velha fortaleza, a que vem em parte, a justificar, para o Autor, o título do livro Terra de Bravos. O Autor envereda pelas páginas da história, da qual há aqui sínteses impressionantes, suficientemente profundas para elucidar, mas duma leveza condizente com a natureza dum guia e conducente sempre ao realce da dimensão humana que o orienta: as fotos que precedem as escuras pedras e paredões da fortaleza, são ainda de pequenas embarcações num mar de anil escuro e plácidas igrejas ao fundo e a magnífica foto a duas páginas que imediatamente as precede é dum pôr-do-sol legendado assim: “O mar, por vezes, também adormece”.
A sequência “A caminho dos Biscoitos” dá azo a um percurso erudito sobre os topónimos terceirenses – sobretudo os (numerosos) que contêm o termo “ribeiras”. Há uma breve síntese da origem da festa de Nossa Senhora dos Milagres – que depois se trasladaria para o Vale de São Joaquim da Califórnia, onde ainda hoje se realiza, atraindo dezenas de milhares de imigrantes açorianos espalhados por toda a Califórnia, e não só. Não que esta informação esteja, ou devesse estar, incluída em Terceira Terra de Bravos. Incluo-a eu, como terceirense e como imigrante que viveu e laborou no Vale de São Joaquim, para sublinhar que os livros não valem apenas pelo que contêm mas pelo que despertam em nós, neste caso em nós imigrantes que vivemos afectivamente bipartidos entre o lá e o cá. Sendo que o percurso anunciado nesta sequência é os Biscoitos, não admira que a foto duma adega humanizada pela presença de um casal a provar o vinho a encerre. A sua legenda é de amplo alcance: “O vinho, na Terceira, é quase tão antigo como o povoamento da ilha”.
Mais ou menos a meio do livro, após a sequência “A caminho dos Biscoitos”, há uma homenagem a todas as freguesias da Terceira, evocando-se qualquer particularidade histórica, natural ou humana de cada uma, mediante um verso-legenda, formando o conjunto um poema feito “das freguesias” da Terceira. À minha Agualva, destituída de monumentos e demasiado longínqua e fria para ser teatro de cenas históricas, é inegável, no entanto, como indica o seu nome, que o transeunte inevitavelmente acorra para sustento da própria vida. Daí que o poeta Daniel de Sá compreensivelmente escreva: “Saciarei a sede na Agualva”.
Quem imaginaria um guia sobre a Terceira sem “Festas e Folguedos”, a sequência que inicia esta como que segunda metade do livro, a qual abre com uma foto close-up, em que predominam, respectivamente, nos vestidos das raparigas e nas camisas dos homens, o vermelho da paixão e a pureza das intenções. Começamos, como o texto e as fotos da página a seguir nos revelam, pela festa do Espírito Santo, com uma breve síntese da sua história, e com uma chamada de atenção para as particularidades que a reveste de ilha para ilha. Seguem-lhe páginas de fotos, em que a coroa e as insígnis são elementos centrais, e em que a solenidade dos adultos contrasta marcantemente com um esboço de sorriso inocente de criança de coroa à cabeça. As fotos seguintes não são nem precisam ser legendadas, não só porque o texto principal as incorpora, mas porque o visual se constitui linguagem – e o seu protagonista é o povo. Frente ao pessimismo que teme o desaparecimento das festas do Espírito Santo, o Autor aposta no povo mas regista talvez a nota mais sombria, conquanto verdadeira, do livro:
A festa do Espírito Santo não desaparecerá enquanto o povo for o guardião da su memória colectiva. Mas, quando toda a gente souber inglês e estudar até aos dezoito anos, talvez não tenha tempo para aprender a ser “povo”. Ou se as zonas rurais se despovoarem, mudando-se as gente para as cidades, deixará de haver “povo”. Porque a cidade não tem vocação para ser “povo”. A cidade – o burgo – produz burgueses. Talvez restem então as associações culturais ou as autarquias para representarem o passado em rituais etnográficos. O Espírito Santo continuará a servir para teses de doutoramento, mas nunca mais será o mesmo.
Nesta sequência, creio, as fotos e o texto complementam-se com inusitada eloquência: o sagrado (nas fotos em que predomina a coroa e as insígnias, seguidas que são da cerimónia na igreja), mas que por sua vez são seguidas de festivais (desfile de gado ou folias, como se chamavam na minha freguesia; o espectáculo das colchas à janela, as cantorias), logo seguidas que são duma série sobre os imperiozinhos, todos idênticos e diferentes e ingénuos, culminando na grande função em que, por uns dias, ninguém é pobre e só passa fome quem quer.
“Sanjoaninas e Festas da Praia” constituem componentes sine qua nom dos festejos terceirenses mais recentes que este terceirense, que está a uns quantos anos da casa dos setenta, se envergonha de admitir que nunca viu: são uma moderna variante dos velhos arraiais e festas, mas já turisticamente programadas e economicamente planeadas. O que é consistente com o tradicional é o seu espírito festivo. Daniel de Sá menciona a tradição da “rainha”, optando por descurar o seu enraizamento na América – onde há rainhas de tudo: do algodão, do leite, do aço, e, claro, do Espírito Santo. As rainhas dos festivais da Terceira – já as vi, e reis também, nas festas da Senhora da Guadalupe da Agualva – vieram da América. Mas, coisa curiosa, acrescentou-se-lhe um rei, coisa que na América eu nunca vi, mas que faz perfeitamente sentido: quem jamais viu rainha sem rei?
Golpe de génio me parecem as festas da Praia da Vitória, em que, como indica o Autor, “a música, o desporto e a gastronomia têm lugar de privilégio”, às quais porém não faltam as touradas. Assim que, como sugere Daniel de Sá, as inovações nem sempre põem de lado as velhas tradições – talvez a nota mais optimista no que respeita às festas da Terceira, em grande parte agora motivadas, como não poderia deixar de ser no mundo de hoje, por considerações turísticas e económicas.
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