(…cont.)
Na sequência “Danças e Bailinhos de Carnaval” são destrinçadas as diferenças entre os bailinhos ou bailhinhos e as danças de pandeiro e de espada, as quais se integram no teatro popular, “sendo [embora] a sua origem desconhecida”. (Doravante, e por razões de tempo e espaço, este breve texto de apresentação concentrar-se-á no texto escrito – convidando, porém, o público que o adquirir, a não descurar a interrelação de texto escrito e imagem visual. Quanto à tradução do texto para o inglês, essa, está para além das considerações possíveis no âmbito da brevidade do presente texto.)
Não seria concebível, no âmbito duma perspectiva geral das festas da Terceira, não dar um relevo especial às touradas – as de praça (a que a arraia miúda, no meu tempo, não chegava) e as de corda, a que toda a gente chegava e de que, aparentemente, precisava. Pois o festival bravo, tal como a festa do Espírito Santo, a festa de Nossa Senhora dos Milagres da Serreta (em Gustine, na Califórnia), e a de Nossa Senhora de Fátima (em Ludlow, Massachusetts) também emigrou para a Califórnia, onde tem registado ganhos espantosos em termos do número de ganadeiros, de célebres toureiros, e de não poucos confrontos com as autoridades anglo-americanas que, não tendo sangue terceirense, daquelas coisas não intiendem niada. Nem entenderiam o espírito dum capinha como João dos Ovos – nem a admiração que um escritor micaelense como Daniel de Sá tem por ele.
A sequência “As ‘Velhas'” honra a velha tradição cuja origem entronca nas cantigas medievais de escárnio e mal-dizer, mas honra em especial um dos seus expoentes máximos: João Ângelo, contrapartida no que a “Velhas” diz respeito, do João dos Ovos das touradas à corda. Dois homens que merecem – e que aqui recebem – a homenagem que lhes compete, com a dignidade que lhes compete.
“A caminho das Quatro”, “A batalha da Salga”, “A batalha da baía das Mós”, “Praia, a da Vitória” e “o Liberalismo” são as últimas cinco sequências de Terceira Terra de Bravos – e são as sequências que mais justificam o título do livro. O seu tom, que este excerto capta tão bem como tantos outros, é, porém, dos meus favoritos:
Talvez não haja no Mundo uma faixa de terra com tanta História como as menos de vinte milhas que vão do Monte Brasil às Lajes. Por ali andou a honra e a infâmia, a coragem e o medo, o desespero e a esperança. A Terceira gloriosa e decadente, a que cai e se levanta, a que uniu o Mundo e onde o Mundo se desuniu, permanece nas pedras de velhos burgos, nas ruínas de muitos fortes, na memória que bastaria para reconstruir o melhor e o mais terrível da História de Portugal, se por desgraça Portugal perdesse a memória de si.
Salienta-se o papel de relevo de que São Sebastião foi palco. A justamente célebre batalha da Salga – dentre cujos heróis se destaca o de uma mulher, Brianda Pereira – recebe toda a atenção que merece. E não, não foram touros que os terceirenses dispararam contra os castelhanos, como popularmente consta, mas sim vacas! No que respeita à sequência sobre “A batalha da baía das Mós”, destacam-se feitos heróicos entre camponeses e franceses no âmbito duma defesa heróica a favor de D. António, o Indesejado.
O retrato da Praia da Vitória com palco de significativa história da Terceira abre com a tragédia do terramoto de 1755 – que nos Açores vai traduzir-se no que hoje chamaríamos tsunami, e de que a Praia foi uma das vítimas. É evocado ainda o terramoto de 1841, “que a destruiu na sua maior parte, e que por isso ficou conhecido como a ‘caída da Praia'” – de que se ergueria mediante o esforço de José Silvestre Ribeiro, seu filho adoptivo. O seu título “da Vitória” viria, como é sabido, do seu heróico esforço nas lutas entre o Absolutismo e a Liberalismo.
É num encontro entre passado e futuro que o percurso da autoria de Daniel de Sá vai concluir: num parágrafo em que se dá relevo à base das Lajes e o seu papel de relevo a partir da II Grande Guerra, e numa evocação das Quatro Ribeiras, “a duas léguas daqui. E é nesse lugar mítico da memória da ilha que havemos de concluir a viagem. Porque o regresso já não é viajar. É voltar a casa. Ainda que apeteça ser a a nossa casa uma qualquer dessas que nos vão saudando pelo caminho”.
Mas Terceira Terra de Bravos não acaba aqui numa evocação do berço mítico da Terceira. Daniel de Sá vai trazer à tona a velha lenda que Camões baseara a Ilha dos Amores d’Os Lusíadas na ilha Terceira. Unindo essa lenda à histórica presença dos restos mortais de Paulo da Gama, que veio morrer à Terceira, embora não se saiba ao certo onde param os seus ossos – figura que Daniel de Sá vai chamar, e com razão”, “uma das mais tristes personagens da nossa história trágico-marítima” – o Autor de Terceira Terra de Bravos compõe uma estância que o irmão de Vasco da Gama bem teria merecido do Autor d’Os Lusíadas, mas que é também, e sobretudo, uma homenagem, do poeta Daniel de Sá, ao povo da sua bem-amada e admirada ilha Terceira:
E tu, Paulo da Gama, que primeiro
No mesmo peito foste amamentado,
Do mundo que demandas, ventureiro,
Hás-de voltar sem nunca ter voltado.
Verás, Vasco, o fiel teu companheiro
Na ilustre Ilha de Cristo sepultado
E ali o chorarás, Gama segundo,
Onde o valor humano muda o mundo.
Francisco Cota Fagundes
Amherst, Nov. 2010
Francisco Cota Fagundes doutorou-se em Línguas e Literaturas Hispânicas pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (1976) e desde então lecciona na Universidade de Massachusetts Amherst. Foi professor visitante em várias universidades, incluindo a Universidade da Califórnia em Santa Barbara e a Universidade de Massachusetts Dartmouth. Lecciona língua e literatura portuguesa e língua e literatura espanhola a nível de graduação; e todas as áreas de literaturas lusófonas a nível de pós-graduação. Entre os livros da sua autoria e volumes organizados, co-organizados, traduzidos e co-traduzidos contam-se Narrativas em metamorfose: abordagens interdisciplinares (2009) com Irene Maria F. Blayer; Oral and Written Narratives and Cultural Identity: Interdisciplinary Approaches (2007) com Irene Maria F. Blayer; Tudo Isto que Rodeia Jorge de Sena: An International Colloquium (2003); Desta e da Outra Margem do Atlântico: Estudos de Literatura Açoriana e da Diáspora (2003); “Para emergir nascemos”: Estudos em Rememoração de Jorge de Sena (2000); Hard Knocks: An Azorean-American Odyssey (Memoir) (2000); Ecos de uma Viagem: Em Honra de Eduardo Mayone Dias ( 1999); Metaformoses do Amor: Estudos sobre a Ficção Breve de Jorge de Sena (1999); The Baron (1996; trad. de O Barão, de Branquinho da Fonseca); Stormy Isles: An Azorean Tale (1994; trad. de Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio); Metamorphoses (1991; trad. de Metamorfoses, de Jorge de Sena); A Poet’s Way with Music: Humanism in Jorge de Sena’s Poetry (1988). Também editou cerca de 60 ensaios em revistas especializadas. Já apresentou mais de 100 trabalhos e conferências em fóruns nacionais e internacionais. Integra a comissão científica de mais de uma dúzia de revistas literárias.