Foto Paisagem da Cultura da Vinha,Pico/Christina Ramos
O poço de maré, the tidal well
Havia um poço de maré no meio do caminho: a pedra aparelhada e negra como a dos muros e casas altas em redor, o balde, o braço de madeira para fazê-lo subir e descer ao ritmo dos dias. Muitos viajantes ali terão parado a descansar das andanças do mundo, outros retiraram dali a água que apaga a fornalha das vinhas e dos alambiques afastados do olhar.
Ninguém esperaria encontrar-se com uma samaritana, mesmo que ela fosse apenas pretexto para um daqueles milagres capazes de tornar doce a água do mar ou transformá-la em vinho de bodas rústicas. E, na verdade, quem lá estava era um homem que pousava a mão no beiral do poço e olhava o lento escoar do tempo ao fim da manhã. O sol batia-lhe no cabelo e corria depois pelo rosto, onde algumas sombras se tinham deixado ficar. Mas não era a água que o detinha ali; muitas marés tinham já subido e descido pelo seu corpo gasto, abrindo sulcos e fissuras e traçando o rasto de canseiras e fadigas (dessas coisas sabia ele) e chega uma altura da vida em que se faz um balanço e tudo parece cumprido. Então, as palavras despem-se de pressas e inquietações, pois já todas as sedes foram apaziguadas e satisfeitas as fomes e resta um fio de memória sobre a terra seca, uma sabedoria trazida do passado para lançar ao futuro. Como se ele estivesse ali desde tempos remotos à espera destes jovens vindos do outro lado do mundo precisamente para ouvi-lo.
You know, um homem sempre quer melhorar a vida, e em setenta e dois havia a guerra no ultramar, quem é que podia ver os filhos baterem lá com os costados?, eles na América tinham também o Vietnam, mas no Canadá não havia guerra, e isto aqui era tudo uma pobreza, uns pobres de Cristo que nunca sabiam o que o dia seguinte lhes ia trazer. Era arriscado caminhar por aí fora, rumo ao desconhecido? Pois era, mas havia trabalho. Trabalho duro, na construção, tijolo para cima, tijolo para baixo, bricks, you see, trabalho bruto, buildings enormes, casas e mais casas, mas dava dinheiro e um tecto para proteger a mulher e os filhos do calor e do frio. Trinta e oito anos depois, muitas marés já cobriram e descobriram o fundo deste poço, a vida é assim, uns tempos a andar e outros a desandar. Sabe o senhor, um homem deixa a ilha, o senhor também não vive cá, sabe como são as coisas, deixa a ilha e pensa que vai ali fora uns tempos, uns anos e depois regressa com a vida arrumada para gozar o fruto do seu trabalho. Fantasias! O tempo encarrega-se de varrer-nos essas teias da cabeça. Agora, venho por cá sempre que posso, umas vezes só por vir, para estar com o meu silêncio, outras para pôr ordem na vida, acrescentar os retratos da graduation de mais um neto, da neta que casou, é assim como uma segunda vida que os retratos vão contando deste lado, em cima das cómodas, ao lado daqueles que sempre estiveram cá. Os netos já não pertencem a estas pedras negras, you see, são canadianos. É melhor dizer que ainda não pertencem, hão-de pertencer um dia quando descobrirem que isto aqui também faz parte deles, uma parte ausente, como uma jaqueta que ficou na curva do caminho e se pode ir buscar a qualquer hora. Mas é preciso saber esperar, o tempo é que amadurece as amoras que saltam por aí à frente dos olhos, e há o tempo de cada um regressar às casas pela primeira vez e reconhecer a arrumação dos retratos, das mesas e das camas, reconhecer o lugar que sempre ocupou nelas desde o princípio das coisas. As casas guardam os sinais das pessoas, os gestos e até mesmo as vozes, às vezes debaixo de camadas de poeira, e aguardam que alguém chegue um dia e reclame para si essas memórias. Mas, se o senhor me diz que esta rapaziada vem cá por causa disto tudo, então o que é que eu tenho para lhes dizer que eles não saibam ou não venham a saber pelos seus próprios meios?
Havia um poço de maré no meio do caminho. E um homem que ainda lá deve continuar, renascendo em cada palavra lançada aos improváveis netos surgidos nessa manhã de sol.
Urbano Bettencourt
Pico e S. Miguel
Agosto de 2010
Urbano Bittencourt (1949) É natural da Ilha do Pico,reside em Ponta Delgada. Professor da Universidade dos Açores. Um dos mais expressivos escritores contemporâneos açorianos.Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. É professor Assistente Convidado na Universidade dos Açores,no Departamento Línguas e Literaturas Modernas, onde tem lecionado entre outras, as disciplinas de Introdução aos Estudos Literários, Literatura Portuguesa, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa e Literatura Açoriana.
Uma produção literária intensa e muito significativa na poesia,narrativa e ensaio. Seu mais recente título: Que paisagem apagarás. Narrativas.Editor: Publiçor,julho de 2010