Aqui há algum tempo tive o prazer e a honra de prefaciar e apresentar O Outro Lado: palavras livres como o pensamento (2014), alguma da poesia de Aníbal C. Pires. Evitei propositadamente algumas palavras, especialmente “político” e “política”, assim como qualquer menção a ideologia ou opções partidárias. Não que a literatura esteja livre de ideologia, que diz, sempre, algo não só sobre o estado de alma do seu autor, como, directa ou indirectamente insinua a natureza da sociedade, a sua história, o seu tempo. Este não é o primeiro livro de prosa do autor (que mencionarei mais à frente), mas nestas páginas ser-me-ia impossível, e até desonesto, não aludir às posições cívicas tomadas e partilhadas por um autor consciente de toda a problemática da sua sociedade, e que não hesita nem na crítica, na sugestão de posições, de soluções, ou pelo menos não hesita na tentativa de abrir um diálogo com os seus leitores sobre o quotidiano que vivem e as possibilidades de um outro futuro. Certas palavras aqui, portanto, são inevitáveis e muito bem-vindas, por entre alguns textos de cariz abertamente poético e de celebração à chamada “vida em ilha”, como um dia me mencionou uma alta figura de um dos primeiros governos regionais do nosso arquipélago. Antes de mais, devo confessar que o próprio titulo de crónicas e ensaios em Toada do mar e da terra remete-me de imediato para um outro autor progressista do nosso cânone literário, o falecido Dias de Melo, com quem suspeito por parte de Aníbal C. Pires afinidades memoriais sócio-económicas, e sobretudo culturais. Este é um primeiro volume, que data dos anos 2003-2008, e este facto é para mim de grande significado, pois foram o início dos meus próprios anos de chumbo devido a “catástrofes” familiares de doença e as subsequentes sequelas que ainda hoje permanecem – e vão permanecer – em mim. Ler sobre o que vivia e pensava, e seria depois uma das figuras políticas açorianas durante esses anos é como ler e dar-me consciência pela primeira vez do que ia à minha volta, do que enfrentava a minha sociedade. Não deve haver nada de mais “egoísta” do que a doença, quando nos força a virar-nos totalmente para dentro, pouco ou mais nada fazendo sentido para além das agonias pessoais, ou o sofrimento indescritível de quem amamos. Ler Toada do mar e da terra foi para mim ainda mais do que isso: foi ler um dos nossos melhores colunistas da imprensa regional, com as suas linguagens de clareza inequívoca, intelectualmente honestas, de uma grande riqueza lexical – e depois as destemidas posições que nos apresenta sem nunca insinuar numa só frase o desrespeito pelos que com ele discordam, ou então travavam duras lutas políticas dentro e fora das estruturas partidárias.
De seguida, queria lembrar que Aníbal C. Pires é natural do interior de Portugal, mas encontra-se a viver nos Açores há muitos anos, onde tem exercido com distinção o professorado no ensino público da região (São Miguel), e durante os anos mais recentes foi deputado pela CDU na Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Esta pouca informação biográfica tem só um objectivo neste meu escrito – relembrar que ser-se açoriano pouco tem a ver com o lugar de nascença ou mesmo de ancestralidade. Muito mais do que isso, será um estado de espírito que invade quem connosco decide viver e enfrentar o destino a partir de pequenas ilhas a meio atlântico, olhando para sempre o resto do país ou do mundo na condição de “ilhéu” universalizado pela sua experiência e contacto diário com as mais longínquas geografias. Nas palavras da epígrafe que uso aqui, numa tentativa de resumo de tudo que vos desejo comunicar sobre este livro, Aníbal C. Pires diz quase tudo. Visitar as origens de nascença, alguns dos seus mais próximos que lá ficaram para sempre, nunca deixará de ser um imperativo pessoal e uma outra viagem de saudade, mas o seu verdadeiro lar português fica neste lado do Atlântico. Aguentar outro clima é naturalmente possível, mas todo o nosso ser clama pelo “território do coração”, pela convivência com a família, com os amigos, com os colegas, com a luta diária pela pequena sociedade. Coisa estranha da minha parte ante este poeta e escritor. Nunca penso nele, nem nas nossas conversas algo frequentes, e muito menos na sua escrita, como militante político, antes no activo e agora provavelmente só nos bastidores. Não estarei só. Na apresentação que fiz da já aqui referida poesia, perante uma grande audiência no Coliseu Micaelense, olhava para todos e via gente de todos os partidos políticos, desde os mais conservadores de direita aos mais radicais de esquerda, numa demonstração saudável do respeito mútuo e da apreciação da arte para além das questões momentâneas da política ou do combate parlamentar. Se olhássemos a grande literatura pela perspectiva ideológica dos melhores autores do mundo, garanto-vos que as nossas leituras seriam muitíssimo mais reduzidas, perderíamos o melhor que a humanidade nos oferece, as visões infindáveis da nossa condição, dos nossos desesperos, dos nossos desejos e sonhos, perderíamos a capacidade de tentar perceber a vida dos “outros” e do modo como enfrentaram e sobrevivam bem ao nosso lado, quer na mesma rua da nossa residência e afectos quer nos mais desconhecidos lugares do planeta, da sua originalidade em modos de vida que em quase tudo diferem dos nossos, menos a condição primordial da humanidade. Andamos todos em busca da felicidade e da eliminação do sofrimento num mundo que nunca foi, apesar de tudo e de saberes maiores, pacífico e solidário. Toada do mar e da terra traz-nos até ao presente numa crónica de 2007, intitulada “Por uma Cidadania Plena”.
“Portugal não foi. Portugal é um país de emigrantes. Mas Portugal, fruto do desenvolvimento e das transformações sociais, culturais, políticas e económicas que se verificaram depois da Revolução de Abril de 1974 e da sua integração europeia, ganhou capacidade de atração, ou melhor, aumentou essa capacidade de atrair imigrantes. Porque receber cidadãos estrangeiros, sempre recebeu. Cidadãos provenientes das mais diversas origens e com motivações igualmente, distintas… Mas se a história portuguesa é feita de constantes partidas e chegadas, hoje, mais que no passado as chegadas, não pelo seu número, mas, pelo seu impacto social e económico e, sobretudo pela situação internacional decorrente dos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, assumem uma atenção e preocupação redobrada”.
Aí está. A visão de Aníbal C. Pires em Toada do mar e da terra faz-me lembrar a “poética da relação” do grande escritor francófono Édourd Glissant, natural da ilha de Martinica, nas Caraíbas. Li a versão em língua inglesa de Poetics of Relation, em que ele propõe que as ilhas nunca foram lugar de isolamento, mas sim de encontros, absorvendo constantemente os que nos vêm de fora, e sobretudo confirma não as nossas diferenças mas o que nos une para além de línguas, sotaques e um ou outro modo de ser. É o que temos nestas belas páginas do autor de Toada do mar e da terra, a vida múltipla de um povo, e sobretudo o seu olhar constante para além do horizonte. Não se trata só aqui do relacionamento entre nove ilhas há mais de 500 anos em busca do seu encontro fraterno e sócio-económico. Sobretudo, de como os Açores têm e terão sempre de desenvolver ainda mais os seus relacionamentos com o exterior, tanto nas suas partidas históricas partidas para todos os cantos do mundo, como agora num mais vasto recebimento dos seus convidados, que começam a visitar-nos e a conhecer-nos em números nunca vistos.
Toada do mar e da terra, pelas datas em cada crónica, faz-me recuperar alguns anos da minha desatenção, como aliás já mencionei. É isto que nos deve proporcionar a história, e ainda mais a história comentada, fazendo-nos adquirir novas perspectivas, mesmo que divergentes ou controversas, despertando o nosso pensamento e melhor entendimento de nós próprios, do nosso lugar e do nosso tempo. Nem só o passado nos define. A consciência de termos sido é também a consciência de quem somos, ou gostaríamos de ser. A propósito, Aníbal C. Pires publicou ainda em 2009 a sua tese de mestrado intitulada significantemente Imigrantes nos Açores: Representações dos Imigrantes Face às políticas e Práticas de Acolhimento e Integração.
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Vamberto Freitas
Set.2017
Comunidades
13 ago, 2018, 16:00
” Toada do mar e da terra” de Aníbal Pires. Prefácio Vamberto Freitas
Habituado, que estou, aos índices de humidade mais elevados e às temperaturas mais amenas se S. Miguel, confesso-vos que já é difícil aguentar com as altas temperaturas e com o ar seco de verão na interioridade continental onde nasci e cresci. Aníbal C. Pires, Toada do mar e da terra