Tratados, Mário T Cabral
Apresentação – 13/ 07/ 2012 – Museu de Angra
Ex.ma Senhora Diretora do Museu de Angra do Heroísmo,
Caro editor Carlos Machado
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Caros Amigos,
Caro Poeta,
Só a generosa amizade do poeta Mário Cabral permitiu que, numa terra tão pródiga de homens e de mulheres dedicados às letras, eu hoje estivesse entre vós a desempenhar esta tarefa. Desde já, agradeço o convite, que muito me honra e alegra, sobretudo porque trataremos de coisas belas. Peço a vossa benevolência para obviar às limitações das palavras que se seguem. Como estamos em casa de S. Francisco e a falar da poesia de um franciscano, confio que será redobrada a vossa caridade.
Um “tratado”, como sabemos, é um texto formal, de cunho filosófico e científico ou mesmo espiritual, em que «se expõe de forma didática um ou vários assuntos a respeito de uma ciência, arte, etc.», ou ainda «o que foi objeto de discussão, estudo ou exposição» (Dicionário Houaiss). Lembremos o Tratado da Oração, do Jejum e da Esmola, de Frei Luís de Granada; O Tratado Lógico-Filosófico, de Wittgenstein, ou ainda o Tratado da Esfera, de Pedro Nunes. É, pois, sob o signo da tratadística que se insere este livro de poemas, lembrando desde logo que pensamento e poesia não têm de andar separados. Mais: o título sugere-nos que esta poesia de algum modo se assume como uma demonstração do mundo, uma interpretação da realidade, uma theoria.
Divididos em dois ciclos de doze poemas – Horas do Dia e Horas da Noite, estes Tratados são um “Tratado das Horas”, um discurso poético sobre o tempo; diria mais, aproveitando o título do primeiro poema: este livro é um “Tratado da Salvação e da Cura” do próprio tempo, ou de nós, seres radicalmente marcados pelo tempo, dele filhos e vítimas. Corrijo-me: é de tal modo intensa a tradição cristã que sustenta este discurso poético que o tempo passa da angústia à aliança. Daí que estes dois ciclos de horas diurnas e noturnas tenham uma inconfundível marca das horas canónicas – começamos aqui o dia às seis da manhã e terminamos a noite às cinco da manhã, num ciclo ininterrupto de diálogo entre a luz e as trevas, sendo que as trevas se transformam em luz e não se ocultam os sinais das trevas em plena luz, quando o poeta dá expressão às tentações e enganos de que pode padecer: «”Deixa-te ir sem nome, ó poeta, cai sem medo no mar de cima”./ Não, não, não, é Lúcifer quem chama, o lúcido Anjo das Trevas, pai da mentira»; isto está em pleno acordo com o ensinamento de São Gregório Magno: «A aurora ou madrugada anunciam que já passou a noite, mas não mostram ainda todo o esplendor do dia; […] De facto, todos nós que nesta vida seguimos a verdade, somos como a madrugada ou aurora, porque já praticamos algumas obras da luz, mas não estamos ainda totalmente livres dos vestígios das trevas.» Foi ainda perfeitamente entendida a grande lição de S. Bento de Núrsia, Padroeiro da Europa: o tempo é nosso aliado na ascensão para Deus. Se é verdade que «Na maior parte das horas reside a trela atrelada sem função» e que «em liberdade mas sem função – Officium Defunctorum – os cães se enfastiam», também é verdade que «acendem o fulgor ao tilintar dela [função], que os liberta da liberdade.» Nunca melhor definição do homem moderno: uma espécie de “cão enfastiado” a cumprir um ofício de defuntos em vida, isto é, defunto antes de cumprir a sua função, tão cioso da sua liberdade que nela se prende e se perde, não encontrando nenhum gosto ou sentido. A função é, pois, uma orientação da liberdade, um bom e justo emprego dela: «Ó Tempo! Ó Tempo! O Tempo é a função e a função é a idade». Diríamos, por isso, que dividir sabiamente o tempo, ocupá-lo, gastar a idade em ordem ao Bem é tornar a existência um Officium Vivorum.
Daí que, neste livro, encontremos também o poeta-monge, encarregado de «Contemplata aliis tradere», comunicação da verdade profunda e bela do ser: «Sou avisado, suavizado, sim, pelo Anjo, o grito de Paulo/ Paulatinamente soletrado: “Ma-ran-atha! Ma-ran-atha!”». Logo nestes versos, detetamos o constante jogo linguístico de Tratados: «Sou avisado/ suavizado», através da exploração da paronímia, como se a correspondência dos sons, as suas semelhanças, fossem um processo de cura e de revelação da própria linguagem – “ser avisado” é “ser suavizado”, porque os avisos vêm do Alto e a linguagem é bálsamo. Por outro lado, também são frequentes as combinações etimológicas: “Paulo”/ “Paulatinamente”, dando-se conta, assim, da infatigável atividade e oração do grande Apóstolo das Gentes, que invoca sem cessar a vinda do Senhor – “Maranatha” – simbolicamente soletrada no original aramaico. No entanto, é um monge que, ainda mais humilde, apesar de se instalar no “trono tecnológico” é «Rei em seu trono sem a glória dos claustros contemplativos ele obra melhor». Nem faltam a este monge umas visões aparentadas com as tentações de Santo Antão, vistas pelos olhos de Hieronimus Bosch, ou mesmo através da técnica de Arcimboldo, como lemos no Tratado PsicaPsicaPsicadalítico, que começa com esta recriação da língua: «O delírio do monge é um delírio deslumbranco, glória da sua negação/ Solêncio, que o traz nas mãos um palmo acima da terra…».
O poeta que contempla Deus, ou que aspira visceralmente por Deus, como o sequioso arde pela água, no dizer do Salmo 62, participa do dom da poesia, que, de forma clarividente, é associada ao Espírito Santo: «Foi com o Pai que o Filho aprendeu a Poesia, o quinto, por serem cinco as chagas/ A Poesia, ou seja, a arte de governar cedendo, instaurando sem querer, Paráclito.» Deste modo, poderíamos dizer que a Poesia, mais do que ser filha das Musas, é o próprio Amor com que o Pai ama o Filho e com que é correspondido; mergulhamos no mistério divino da linguagem, dom e grandeza, Pentecostes, vida e superação.
Isto significa que este livro estabelece um perfeito contraste com muita da literatura portuguesa do século XIX e, mormente, do século XX, de forma óbvia, a partir do Modernismo. Estamos longe daquela hora agónica de «Impressões do Crepúsculo», pesadelo interminável e claustrofóbico de um tempo e de um espaço que se converteram em ratoeira do ser humano: «Tão sempre a mesma a Hora», «Ó que mudo grito de ânsia põe garras na Hora», «Hora expulsa de si Tempo». Assim, os Tratados parecem responder ao cinismo do século XX, que chegou aos nossos dias: «Há horas que se recusam assim ao Tempo recebendo a Eternidade», confessa o poeta-jardineiro perante o «farto braçado de rosas»; ou ainda: «Não custa, basta comer os dias, como ele ordena.» Viver verdadeiramente é, por conseguinte, “comer os dias”, saboreá-los, torná-los corpo e sangue.
A mero título de exemplo, respigado quase ao acaso, lembro o prefácio de Eduardo Lourenço a Uma Viagem à Índia, de Gonçalo Tavares, de 2010, no qual se fazem afirmações deste teor: «É apenas, num travestimento sem precedentes do texto epopaico […] uma viagem ao fim do nosso fabuloso presente como glosa interminável da existência como tédio de si mesma.» ou ainda: «Agora [Bloom] sabe o que já pressentia. Que não viajamos para nenhum paraíso. Que todas as viagens são sempre um regresso ao passado de onde nunca saímos.» e mais: «É de uma negrura absoluta esta viagem à Índia, pátria arcaica de nós mesmos como Espírito, entre fantasmas e vampiros de que esta cruel e tónica Viagem se alimenta.»; por fim: «Uma Viagem à Índia é uma navegação parada e fulgurante da nossa alma de pós-modernos…». O desgosto com a Criação acaba por ser um desgosto em relação a si e aos outros, a queda no tédio interminável, a transformação da existência numa viagem negra que não parte nem chega; as horas são roídas com o desespero dos condenados ou, pelo menos, suportadas com o cinismo dos que, perversamente, se assumem como prisioneiros do nada. Numa visão mais abrange
nte, diríamos que o célebre e acrítico “antropocentrismo” redundou em niilismo ou mesno “niilocentrismo”. Ora, os Tratados, na sua organização de um dia completo, também evocam de algum modo o Ulisses, de Joyce. Só que esta “epopeia” ou “romance” em vinte e quatro poemas são o contrário de um labirinto irredimível. O poeta-jardineiro-arquiteto-monge-criada é uma personagem que explora a riqueza da sua personalidade, multiplicada por várias funções, que se observa e consigo dialoga, como se fosse uma rosa ou rosácea aberta em várias pétalas para melhor sorver o orvalho e o sol da realidade. Com efeito, estamos bem longe desse cortejo de fantasmas que são os heterónimos pessoanos, ou mesmo dos pensamentos hipostasiados de Ulrich, o protagonista de O Homem sem Qualidades, que o fazem vítima da sua inteligência, transformada em teatro devorador e feroz cortina de ferro que torna incomunicáveis o homem e a alegria do mundo. Diria mais: o poeta revela uma viva prática e ortodoxia cristãs, consciente poeticamente, digamos, de que toda a “heresia” é uma ameaça à saúde e salvação do homem, como é vivamente sentido pelos Padres da Igreja e incansavelmente repetido por Chesterton, por exemplo.
Aqui as horas e os horários exprimem a cooperação do homem com a obra de Deus. Por isso, o primeiro poema, vai ser uma súmula das grandes linhas bíblicas da criação e da salvação. Em cada amanhecer, o corpo, posicionado como o seis, ou um feto, ou como um oito, sinal do infinito, é chamado a sair do ventre da baleia, que é o bojo da noite e das trevas, e a participar na liturgia renovada da criação do mundo: «”Fiat lux!”, ordena Ele de novo.», liturgia que se completa com a ação de Deus Filho: «Levanta-te, toma o teu leito e anda!», ordena de novo o Divino Mestre, para que o poeta-discípulo se acerque outra vez da piscina probática e da pia batismal. Levantar-se, purificar-se, começar o dia como se começasse o mundo. São frequentes as referências ao poder curativo de Cristo, nas impressivas palavras do aramaico: «Effatá» (“Abre-te”), «Talitá qum» (“Menina, eu te ordeno, levanta-te”).
Nos Tratados, temos, de facto, um homem criador de sentidos, arquiteto e jardineiro do mundo, aberto ao eterno e, ao mesmo tempo, deslumbrado com um braçado de rosas, que lhe ensinam a geometria milagrosa das cousas criadas; e uma geometria de «carne viva/ Círculos e mais círculos para o centro, rede moinho [é rede e moinho], mandala [tudo junto, homenagem ao budismo] afastar-se». Tudo ganha sentido na «mesa da Ceia», o verdadeiro centro do homem, quer do ponto de vista antropológico, quer do ponto de vista especificamente cristão, que nos faz jogar com as antitéticas rosas cândidas e as rosas das feridas que sangram: é o drama da pureza e do sangue, um drama do corpo e do espírito. Na rosácea, a doutrina cristã ganha cor e forma, é uma festa da ordem e da luz, uma proclamação do sentido sagrado do mundo, promessa de triunfo e de ressurreição. De algum modo, Tratados funciona como uma rosácea poética, obedecendo a uma geometria rica de sentidos: cada poema, por exemplo, salvo em três casos, tem exatamente vinte e quatro versos, a parte contém o todo, o todo projeta-se em cada uma das partes e dá-lhes sentido. Poderíamos ainda dizer que a designação de cada tratado/ hora do dia, em muitos dos casos, poderia ser o título de todo o livro: Tratado Eucarístico, Tratado da Luz no Meio das Trevas, Tratado da Presentificação, etc.
É também o homem que, humildemente curvado sobre a terra, gostosamente enclausurado no seu jardim, sente no rosto a aragem sagrada com que Jacob se confrontou: «Penuel, Penuel». Não é por acaso que há constantes referências aos anjos, presença de Deus no aqui e no agora, muitas vezes como Nemésio os definiu: «Anjos são os terríveis/ Modos de Deus connosco;/ Nós, as suas possíveis/ Transparências a fosco.» É o Deus bíblico em plena “Horaação”, a dar sentido às horas e a transformá-las em tempo de combate; é o Deus que, como a Beleza, é um lugar terrível, uma permanente “pro-vocação”, um chamamento a sermos mais, a sermos como deuses, na visão dos Santos Padres; é a theosis ou “divinização”, na linguagem teológica do Oriente cristão, como afirma lapidarmente Santo Atanásio de Alexandria: «Deus fez-se homem, para que o homem se fizesse Deus», e repete São Tomás: «O Unigénito Filho de Deus assumiu a nossa carne para nos tornar participantes da divindade, fez-se homem para fazer dos homens deuses.» No Tratado Eucarístico, é-nos dada a divinização da família à volta da mesa. É um diálogo intricado, hermético mesmo, que evoca as grandes festas cristãs à maneira da celebração da Páscoa judaica: «Titi, porque é que estamos reunidos aqui esta noite?». Começa assim o poema: «- Delicioso cordeiro tio!, exclama comendo as vírgulas o sobrinho mais velho/ Aquele mesmo que herdou o mesmo nome, por deferência. – És um Mestre!/ – Se o cordeiro fosse o tio estavas a comer-te a ti próprio, Mestre de Verdade.» Com a ausência da vírgula a separar o vocativo, torna-se evidente a identificação “tio/ cordeiro”, um tio que é patriarca e mestre da família, o que ensina, o que vê transmitido o nome próprio, o que se torna tradição viva e se dá a comer, se vai tornando, como diz, mais uma vez, Nemésio no poema «Futuro Perfeito», «terra da sua experiência».
Também se trata de alquimia. As oito horas são mesmo um Tratado Alquímico. Não estamos perante um revivalismo das buscas, mais ou menos tresloucadas, da transformação dos metais não nobres em ouro, mas sim perante uma conversão da própria linguagem e da atitude; é uma obra de transubstanciação da realidade em sagrado. A verdadeira “Obra ao negro” é «Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último e o servo de todos.» Cristo, mais uma vez, é o grande alquimista, é Ele que permite transformar em beleza e graça a vida humana, mesmo as chagas, mesmo as trevas. De um modo muito claro, no meu entender, estes poemas realizam aquilo que o teólogo do século XX Nicolau Zernov (1898-1980) afirmou acerca da espiritualidade que justifica a iconografia cristã:
«As cores e linhas dos ícones não pretendem imitar a natureza; os artistas almejam demonstrar que os homens, os animais e as plantas, e todo o cosmos, podem ser resgatados do seu presente estado de degradação e verem restaurada a sua verdadeira “imagem”. Os ícones eram o penhor da vitória futura de uma criação redimida sobre a criação decaída… A perfeição artística de um ícone não era apenas o reflexo da glória celestial – era um exemplo concreto da matéria devolvida à sua harmonia e beleza originais, servindo como comunicação do Espírito. Os ícones eram parte do cosmos transfigurado.» (citado in Timothy (Kallistos) Ware, The Ortodox Church, p. 34)
Não será este o desejo secreto de toda a arte? No Tratado da Servidão Humana, o lençol estendido a contraluz é visto como sudário que «Transformará os dedos esgaçados com membranas de linho bordado/ Em mais que ponte, pontificado, himeneu, himeneu, pois sim.» Os olhos dos bichos também anunciam um «milagre inqualificável» e a serva, cega e iluminada ao mesmo tempo, pontifica no «Mistério pressentido diluído na paisagem/ O sinal de que a esta hora inesperada me serve/ O Senhor a quem eu sirvo sem cessar.» É a relação com este Senhor que se fez servo – semetipsum exinanivit, como diz S. Paulo, na Carta aos Filipenses e o poeta repete – que permite uma radical alquimia do mundo; consequentemente, estender a roupa lavada, por exemplo, é um caminho possível para o Mistério: um lençol é, na dolorosa alegria das coisas humanas, um convite ao himeneu e um anúncio de sudário. Ora isto quer dizer que a humildade doméstica, o despojamento da casa e das suas tarefas, não são um obstáculo à grandeza, mas quase uma condição sine qua non para se alcançar a graça do infinito. Insistamos: a casa, a realidade, o mundo bom criado pelo bom Deus é um caminho de abertura ao Mistério. E o poema é o canal da graça, o pequeno ícone que nos reflete a luz sagrada do Tabor, e nos devolve a criação metamorfoseada. Tal acontece de forma luminosa no belíssimo Tratado de Pintura e Feitiçaria, uma verdadeira écfrase, ou atualização do princípio clássico de ut pictura poesis, que começa assim: «Ao meio-dia toda a Terra cultivada presta e presta culto sobre a mesa da cozinha» e no terceiro verso: «A criada dá-se bem com a matéria, essências para ela são perfumes…». Do mesmo modo, o Tratado de Pescaria: «Benvinda, a criada, dá-se bem com a matéria seja qual for a hora do dia/ Seja qual for o corpo, mathesis universalis em suas mãos benditas»; acresce que, neste poema, se integra o «big bang» e a física quântica, Planck, Einstein, Jonas, Noé. A matéria e as sua leis não assustam o poeta místico; o sobrenatural ensina a colocar a natureza no seu lugar próprio, e o homem na natureza – só assim se iniciou o conhecimento científico; e não é por acaso que a ciência moderna começa no seio do Cristianismo, o que não parece ainda totalmente evidente para muitos espíritos estonteados por luzes bem mais fracas.
É claro que só sabemos da exaltação “materialista” da criada, pela voz do poeta, porque ela não sabe ler, nem escrever, ou ver as horas sequer. Mas porque é “criada”, assumindo também a vida na sua intensa e festiva excitação dos sentidos, é que o poeta pode pintar por palavras com tal autoridade. Afinal, “descer” é condição para “subir”, “servir” é condição para se alcançar esta visão transfigurada e transfiguradora do mundo: o copo ganha o luxo de um «Graal, cálice, cálix, cachos», e um fio de vinho do porto é «leite milagrosamente escarlate, bodas de Canaã» (note-se que, de forma muitíssimo precisa, o poeta joga com “Canaã”, a terra prometida das uvas e do mel, e o milagre das “bodas de Caná”: as promessas feitas ao povo judeu tornaram-se realidade com Cristo, aquele que transforma a água no vinho novo que alegra o coração do homem); por conseguinte, o “poeta” também o é no pleno sentido etimológico da palavra – o criador de um mundo. A mesa da cozinha transforma-se no ateliê de Vermeer, numa ara do sacrifício e síntese das cores, formas e cheiros que o «Século tecnológico» permite juntar num só dia, verdadeiro milagre que o poeta se apressa a ler como um «lado místico», isto é, a tecnologia não tem de estar contra o homem, pois neste caso ela permite a variedade sinestésica sobre a mesa, e, muito mais, a riqueza do mundo levanta-nos, mesmo quando se quebra a romã (esse antiquíssimo símbolo de fecundidade) e o poeta se abaixa para ver os estragos e repete: «Também os cachorrinhos comem as migalhas». Nem os cachorrinhos estariam fora deste banquete, assim o quisessem.
O poeta, de igual modo, aprende com os pequenos rituais do quotidiano, como acontece com o atacar os sapatos no Tratado de Bem Entretecer ou Refletir; é um «Ofício de algum modo oracular» do qual depende, surpreendentemente, «caos e ordem»; a ordem do mundo depende de nós também, Adão a nomear os bichos e a cuidar do Éden. Os atacadores que deslizam «por entre os dedos e os orifícios» são uma trama que «Vai fazendo cruzes que aconchegam o pé», cingindo o corpo para o bom combate da realidade, da alegria do quotidiano. Mas a trama lembra tramoia, metonímia da Casa-Mito do poeta, o seu mundo murado, o éden que herdou e cuida com desvelos de monge, de jardineiro, de arquiteto e de criada, como temos visto. É um espaço murado, a que chamaríamos matricial ou uterino, mas simbolicamente e deveras aberto ao mundo, pelo simples facto de estar em permanência aberto a Deus. Atacar um sapato, dobrando o corpo, pode ser rezar: o corpo também reza, como resulta claro dos ensinamentos de São Gregório de Palamas (1296-1359), Arcebispo de Tessalónica, acerca do hesicasmo: os hesicastas, ao atribuírem tanta importância à participação do corpo na oração, não são culpados de “materialismo grosseiro”, mas estão a ser fiéis à doutrina bíblica da pessoa como uma unidade; Cristo assumiu a carne humana e salvou a pessoa na sua totalidade, por isso, é toda a pessoa – corpo e alma em conjunto – que reza a Deus.
Mas este Tratado do Bem Entretecer é também uma assunção das grandes metáforas clássicas. Se a trama leva à tramoia, o poeta «aedo», à boa maneira homérica, é também Penélope que tem «vergonha do luxo» do seu tear, por ser um dom tão grande, um privilegiado meio de conhecimento, que faz, mais uma vez, que a casa seja um lugar de entendimento do mundo. Aqui, está o poeta «Cônscio do valor das intuições e das experiências entretecidas nas palavras», amplificando a riquíssima polissemia de «tecer»: o conhecimento é uma teia que rigorosamente tudo aproveita, tudo transforma em linguagem, matéria prima, por sua vez, da poesia. Não esqueçamos que estamos perante “Tratados” poéticos, isto é, uma tapeçaria de pensamento, experiência, cultura e linguagem. O poeta- -Penélope é, por isso, o que tece o sentido do mundo a partir de um eu bem concreto e histórico, o herdeiro da Casa das Tramoias, à qual está ligado por um cordato cordão umbilical, para parafrasear um dos significativos jogos de palavras do poema. No entanto, é também Ulisses o nosso poeta, como se em si morassem estas duas almas que, tensamente, jogam entre o estar-partir-regressar. É curioso que, já na Odisseia, haja este paralelismo: Penélope tece a teia, trama o estratagema para contemporizar com os pretendentes, e Ulisses é também um ardiloso artesão de artifícios. Assim, essa dupla vertente, que podemos definir como “ad intra” e “ad extra”, seja uma belíssima definição do ser poeta: um tecelão que, partindo dos fios do tempo e da vida, vai tecendo a sua e nossa teia-tenda, lugar em que somos enredados e habitamos, como seres feitos de linguagem que não podemos deixar de ser.
Deduzimos, porém, que o “nostos” deste Ulisses se faz a partir do regresso do «terraço azul desatacado», isto é, as aventuras do homem de mil artifícios, que é o mesmo que dizer de mil tramoias, são uma deambulação pelos mares infinitos do espírito e da cultura. Como se nos dissesse: se Ulisses pudesse ter conhecido o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, o Deus feito Homem, partiria de outra maneira, não teria perdido tempo em Troia. Por isso, este segundo poema de Tratados regressa ao Evangelho: «Só me resta dormir como quem morre, inútil servo, simples escravo descalço.» Agora, o ideal da “aretê”, da excelência, já não é homérico, mas afoitamente cristão: a glória está no serviço, está no “ministrare” (“servir”) e não no “ministrari” (“ser servido”). Os sapatos calçados no início do poema
são postos de lado, fazem parte do despojamento de Penélope-Ulisses, agora contentes de serem “inúteis servos”, diríamos, porque convertidos à maior das esperanças e à maior das viagens.
Terminemos. Os Tratados tecem a túnica inconsútil entre a fé e a vida, entre o quotidiano e a arte, entre o corpo e o espírito, sob a vigilância permanente dos galos que passam sob os hibiscos, testemunhas da luz da ressurreição. Fazem, ainda, a tessitura rica entre a tradição bíblica e clássica, entre a ciência e a tecnologia, entre a cozinha e a pintura… São poesia de redenção, porque leem as pequenas coisas à luz da eternidade, por isso tudo ganha sabor: e dar sabor à vida é ser sábio e ser poeta.
Obrigado pela vossa atenção.
Sérgio Toste
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Mário Cabral Natural da Terceira, Açores é professor no liceu de Angra. É Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2008). Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu último livro de ficção (O Acidente, Porto: Campo das Letras) ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.