A colectânea “Travessias – contos migratórios”, de Dora Gago, é constituída por 12 contos que a autora divide em duas partes. Os seis primeiros, a que chama “Contos do Rio da Prata”, inserem-se na temática da Literatura de Viagens e são fruto das suas vivências no Uruguai. O leitor é convidado a percorrer as ruas de Montevideu, as margens do Rio da Prata, ou a viajar pelo país, acostando a La Paloma, visitando a Colónia do Sacramento, património mundial, fundada pelos portugueses em 1680.
Nestas travessias, o leitor comunga costumes e tradições, como é o caso do hábito puramente uruguaio de tomar “mate”, uma espécie de chá tomado a toda a hora; da tradição “gaúcha” do domador de cavalos, em “Sagitário”; dos “hurgadores” que revolvem o lixo na recolha de vidro e de cartão, em “Amanhã será outro dia”; ou da “murga”, grupo carnavalesco que satiriza indivíduos ou acontecimentos sociais, na senda medieval das Cantigas de Escárnio e de Maldizer, em “O Eldorado”.
Na tessitura do discurso narrativo, perpassam, ainda, a cultura, a literatura, a música e a História da América Latina
Porém, as suas travessias não se limitam ao Uruguai. Atravessa o Rio da Prata e detém-se em Buenos Aires, para, depois, atravessar oceanos e continentes, passando por África e pela Ásia – Macau e o Rio das Pérolas.
Através de personagens, na sua grande maioria, femininas, tantas vezes “alter-ego”, o seu olhar comove-se com os desprotegidos e com os problemas sociais, como a emigração, jangada de fuga à miséria, e o consequente desmembramento de afectos, o tráfico de mulheres ou o abate de lobos-marinhos.
A temática da emigração é recorrente em vários contos. A demanda do Ideal liga o mundo onírico ao mundo real. O sonho, que motiva a partida, a busca do “El Dorado”, é constantemente desfeito, por um ludíbrio que, após o “pathos”, desencadeia o regresso ao ventre da terra mãe, como, por exemplo, em “A caçadora de ilusões”, em “Sagitário ou em “El Dorado”.
O regresso é um tema retomado e renovado, na segunda parte desta obra, intitulada “Outras travessias”. Desta vez, o retorno à infância ou à “velha casa” (em “A chave das memórias”).
Estas “outras travessias” são peregrinações ao interior da autora/narradora que usa, como veículo, várias personagens femininas, Isabel, Helena, Ana Cláudia, Sara, Alice, onde sobressaem a figura da avó, da mãe, da irmã ou da amiga, na procura do entendimento do eu (e dos outros) e das causas que determinaram “a tinta com que foi pintada”.
Perscruta, nessa travessia ao âmago do seu ser, respostas para mitigar a inquietude que lhe avassala a alma. O abandono, a perda – corporizada pela presença da morte -, o desencanto, a solidão, a amargura, a tristeza d’alma, espelhada no céu plúmbeo de Macau, são capturados pelas personagens, funcionando como catarse das más memórias e como meio para alcançar a serenidade, o estado ideal da alma, que se persegue até à morte, pois, como diz em “Nota Prévia”, “migratória será sempre a própria essência dos sonhos, da literatura e da vida”.
A migração pela literatura concretiza-se na fusão de géneros, no enlace da narrativa com a poesia, como, a título de exemplo, no conto “Nunca será tarde”:
Janeiro trouxe no regaço o cheiro doce e harmonioso dos jasmins, aliado aos dias quentes, longos e luminosos.
A adjectivação a trazer à lembrança a poética de Sophia de Mello Breyner. Ou a linguagem metafórica, a propósito de Alice, em “Um pouco mais de azul”:
“Não se pode prender o que flui como um rio”. Essa era a sua principal característica: fluir, correr viajar, evoluir, passar, como a paleta de cores sobre as telas, deixando marcas indeléveis naqueles que haviam cruzado os seus caminhos.(…)
A sua mente era aberta, livre e disponível, os seus horizontes tinham a dimensão de todos os caminhos do mundo que trilhara, de todas as pedras que lhe haviam ferido os pés, de todos os mares onde se havia banhado.
Alguém terá dito que “toda a escrita é autobiográfica”. Também o é, no caso de “Travessias”, mas é, simultaneamente, “heterobiográfica”. A capacidade para descrever, “colhendo o doce fruto de seus anos”, como se as vivesse, a velhice ou a doença, e para compreender e vestir como sua, a alma de outrem, denotam a sensibilidade, a comoção, o altruísmo de um ser que, indiferente aos graus académicos e ao vasto e rico currículo que possui, é humilde e simples, como só os sábios sabem ser.
Alvito, 20 de Dezembro de 2014.
Arlinda Mártires