I Am Not a Keeper of Sheep*
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse
How little I know about the world when I let him in,
even though I now can’t remember the day or time,
I can’t remember what random thought guided my
hand in such an innocent act. I say this because it is
of no importance whatsoever on a hot August night,
a drink by my elbow, the cat speaking his mad language
against the window screens, and the blossoms of
so many papers and books in a desultory mess in the little
room. I have been reading without decorum or discipline –
the shelves are manic, nothing takes its civil place
according to alphabet or color or size. The center
cannot hold because it was never there in the first place.
One must not let Pessoa across the threshold. I can say
this with a sober mind for just a while longer. He sits
so unassumingly at the table and you just give him a small
drink, a he begins to speak to you, and then you realize
your day is ruined, your plans will come to nothing, you
will end by trying every subterfuge you know to get him
to leave, but he will wait and wait. And he is so charming!
He will tell you stories, and you will recognize yourself in every
sentence – you will understand quite quickly that he is mocking
you, but then you will begin to doubt that, for he is so sincere,
so simple in his utterance, so passionate in his beliefs. How
can you not offer him another cafezinho, which I do, which
he sips noisily but with a certain finesse. Then I begin feeling
sorry for myself – that old sorrow – and I wish that someone
a long time ago cared for me enough to warn me, to tell me never
to let Pessoa into my kitchen, never to let him go on and on
about his sadness, that sadness that never leaves him no matter
how happy or content he feels, for then there is no hope for him
and none for me, and he at least has his genius to sit with, his
personalities, his Lisbon, his Tagus, and I, like you,
will have to settle for his company, wry, effacing, enigmatic
too delicate for hearty jesting, too prickly and gloomy to be
of any real use around the house. Then the hours do not grow
late in the same manner. The rooms do not simmer and cool
in quite the way that I have become used to. The doors are
no longer silent in the hinges. The planks in the floor begin
their own conversations. So many things become impossible.
He drags a match across the abrasive strip of the matchbox.
The phosphorous makes its shushing sound. He lights another
cigarette. His fingers are so white, so slender, his wrist is like
a girl’s wrist. I am not a keeper of sheet, he says. The night
will be long and soft with stars and the heat and the ticking
of one heart or another. He leans in the chair with that
uncertain charisma, that narrow head. I can tell he is here to stay.
______________________
Eu Não Sou Um Guardador de Rebanhos
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse
Quão pouco eu sabia do mundo quando o deixei cá entrar, e
mesmo que agora já não me lembre do dia ou da hora,
não me recordo do pensamento desconexo que me conduziu a
mão para tal acto inocente. Digo isto porque agora já
não tem importância alguma numa noite cálida de Agosto,
uma bebida à mão, o gato a falar a sua linguagem louca
contra as persianas da janela, o florescimento de
tantos papéis e livros num desarranjo confuso daquele
quarto tacanho. Tenho estado a ler sem decoro nem disciplina –
as estantes estão desarrumadas, nada ocupa o seu devido lugar
segundo uma ordem alfabética ou por cores ou tamanho. O
meu equilíbrio interior desfaz-se porque nunca existiu em primeiro lugar.
Nunca devemos deixar Pessoa entrar nos nossos domínios. Poderei afirmar
isto com toda a seriedade só por mais um pouco. Ele senta-se
à mesa tão descontraidamente, dás-lhe uma
bebidazinha, ele começa a falar-te, e em seguida dás-te conta de que
o dia está arruinado, todos os teus planos não chegaram a nada, acabarás
por tentar todos os subterfúgios que conheces
para o fazer sair, mas ele espera e fica. E ele é tão agradável!
Contar-te-á histórias, nas quais te reconhecerás em cada uma
das suas frases – perceberás muito rapidamente que está a gozar
contigo, mas terás as tuas dúvidas sobre isso, pois ele é tão sincero,
tão simples nos seus dizeres, tão apaixonado nas suas crenças. Como
poderás não oferecer-lhe outro cafezinho, o que faço,
ele sorvendo-o barulhentamente mas com certa elegância. A partir daí começo a sentir
pena de mim próprio – esse meu sentimento antigo – e gostaria que alguém
se tivesse interessado suficientemente por mim para me ter avisado, para me ter dito que nunca deixasse Pessoa entrar na minha cozinha, que nunca o deixasse falar incessantemente sobre a sua tristeza, essa tristeza que não o deixa nunca apesar
da felicidade e contentamento que ele também poderá sentir,
pois a partir daí não haverá mais esperança para ele,
e nenhuma para mim, mas ele pelo menos tem a genialidade como sustento, os seus
heterónimos, a sua Lisboa, o seu Tejo, e eu, como tu,
temos de contentar-nos com a sua presença, resistente, eclipsada, enigmática,
delicada de mais para gracejos de alma, atormentado e sombrio de mais
para que seja minimamente útil em tarefas caseiras. E depois as horas não passam
do mesmo modo. Os quartos não aquecem e arrefecem
exactamente como eu já me tinha habituado. As portas já
não se quedam silenciosas nas suas dobradiças. A madeira dos sobrados enceta
as suas próprias conversas. Tanta coisa se torna agora impossível.
Risca vagarosamente um fósforo na faixa abrasiva da sua caixa.
O fósforo faz o seu barulho habitual. Acende outro
cigarro. Os seus dedos são tão brancos, tão finos, o seu punho parece o de
uma rapariga. Eu não sou um guardador de rebanhos, diz ele. A noite
vai ser longa, amena, com estrelas e calor e o bater
de um coração ou outro. Com aquele carisma indefinido e cabeça pequena,
ele reclina-se na cadeira. Dou-me conta de que chegou para ficar.
_____________________
De Night of a Thousand Blossoms, Alice James Books, Farmington, 2004.