Trumpicar… ma non troppo
Trazer o tema Donald Trump para as páginas do JL pode, à partida, parecer um sinal de degradação cultural. Ocorreu-me, porém, fazê-lo quando na Internet se tornou viral a notícia de que o filósofo Richard Rorty teria previsto o aparecimento de um Trump. Obviamente que acertar no futuro não implica necessariamente “saber”, pois tal conhecimento tem o mesmo estatuto epistemológico de acertar na lotaria – chega-se lá por acaso. Não se diria exactamente o mesmo sobre acertar no Totobola porque aí a previsão de, por exemplo, o Feirense se sagrar campeão nacional não tem as as mesmas probabilidades do prognóstico de uma vitória do Benfica. Isto para significar que não foi mero palpite o que Rorty escreveu, no seu Achieving Our Country – Leftist Thought in Twentieth-Century America (Cambridge / London: Harvard University Press, 1998), acerca dos resultados para ele previsíveis da crescente radicalização que vinha observando na ala democrata americana. Concretamente, o seu progressivo embrenhar-se na defesa de causas (relativas a raça e género, por exemplo) cada vez mais desligadas da base “colarinho azul” – o proletariado do fato de ganga, a classe média baixa americana que durante décadas constituiu a alma do partido democrata. Rorty apontou o seu dedo crítico ao que classificou de “cultural politics preference over real politics”, pressentindo e preanunciando portanto um ricochete, uma onda gigante de ressentimento popular.
Dúzia e meia de anos depois e… entra em cena Donald Trump.
Tenho tentado responder a e-mails de amigos alarmados com o que se passa nos EUA. Hoje a presença física num lugar não é de modo nenhum garantia de melhor conhecimento das suas realidades. Os EUA são tema do domínio comum para qualquer cidadão de qualquer parte minimamente interessado nos rumos do nosso mundo. Significa isto que eu não me considero em nenhuma posição privilegiada que me garanta uma mais segura análise da situação. A verdade, no entanto, é que algumas das perguntas de bem-informados amigos portugueses que ao meu ecrã têm arribado exigem respostas e rectificações. Ouso torná-las públicas pois bem poderá haver mais leitores interessados.
Uma das correcções que gostaria de fazer tem a ver com o grau de expressividade da vitória de Trump. Ele próprio repete ter sido um massive landslide, o que muita comunicação social aceita e repete acriticamente. Na verdade, foi tudo menos isso. Primeiro porque o voto popular deu a vitória a Hillary Clinton: 48,3%, contra 46, 2% para Trump, que expresso em número de votos ainda se torna mais significativo: uma diferença de quase três milhões de votos. A vitória ocorreu apenas (espera-se) no Colégio Eleitoral: mas, ainda assim, somente 57%, o que constitui a 13ª mais curta margem em toda a história dos EUA. E no entanto Trump continua a insistir numa “vitória arrasadora”.
Quer isto dizer que os Estados Unidos não se viraram loucamente para a direita. Os republicanos não tiveram mais votos do que os obtidos nas últimas duas eleições; foram os democratas que não sairam à rua em peso para apoiar Hillary. As razões serão muitas, todavia importa sublinhar que não há de facto nenhuma radical viragem à direita. Ela existe, o suficiente para Trump ter triunfado, mas por uma margem mínima, particularmente nos três estados que fizeram o fiel da balança pender para o seu lado.
Além de todas as razões que até aqui têm sido apontadas como explicativas da vitória, hoje mesmo (no dia em que escrevo) ficou mais próximo de seguro que a intervenção russa terá sido um factor adicional, o que vem confirmar que a tal viragem à direita não é tão significativa como Trump pretende, e que meio-mundo repete sem verificar os números.
A insistência de Trump na sua supostamente retumbante vitória faz parte do tipo de estratégia política que lhe tem valido em toda a campanha. O retrato do presidente-eleito foi magnificamente captado pela escritora Salena Zito na afirmação lapidar: “A imprensa toma Trump à letra, mas não a sério; os seus apoiantes tomam-no a sério, mas não à letra”.
As escolhas de Trump para a sua equipa governamental reiteram precisamente isso: o que ele apregoou na campanha eleitoral é algo bastante diferente do que agora faz, sem qualquer embaraço em admitir que nem se lembra de promessas feitas, chegando mesmo a declarar que algumas afirmações suas não passavam de “eufemismos” (!!! – queria certamente dizer algo como “forças de expressão” ou “hipérboles”) e os seus eleitores tomaram-nas à letra.
Dito de outro modo, teremos um presidente que não avalia as próprias palavras, ou que simplesmente acha que deve dizer só o que os seus eleitores querem ouvir. Depois, dá o dito por não dito. Por isso, haverá que segui-lo de perto e escrutinar rigorosamente as decisões que toma. Num mundo em que os factos como que desapareceram (muitos académicos de esquerda têm culpa disso, pois não têm sido poucos os que vêm insistindo que eles não existem e tudo é construção), temos agora um presidente convencido a sério de que os factos são algo que se atira para o ar para calar e contentar os ouvintes, mas não importam para mais nada (até parece que fez um curso sobre o pós-modernismo numa universidade hiperliberal).
Enquanto escrevo estas linhas recebo o artigo de um professor da Emory University, Mark Bauerlein, que vê Trump como uma figura hegeliana surgida no momento exacto para captar os sinais de uma necessária mudança contra o politicamente correcto dominante nas hostes liberais. Fico estupefacto e só me ocorre uma associação entre ambos, Trump e Hegel: o desdém pelos factos – se é verdade que o famoso filósofo terá mesmo dito “tanto pior para os factos!” quando alguém o confrontou lembrando-lhe que estes não apoiavam as suas teorias.
Que fazer? Soa à famosa pergunta de Lenine, mas impõe-se-nos inevitavelmente.
Nos EUA, os três poderes são de facto três. Eles existem para se vigiarem uns aos outros. Resta-nos esperar que o legislativo e o judicial façam aquilo que lhes compete. As instituições americanas são muito fortes e longe de dependerem exclusivamente das figuras que as lideram. Há depois – e felizmente! – um quarto poder que agora se torna mais e mais importante: a comunicação social. Trump percebe isso muito bem e não pára de desdenhá-la e até achincalhá-la. Mas ela é hoje mais importante do que nunca. Num mundo de fake news, na era post-truth, urge apoiar as grandes fontes de informação tradicionalmente devotas dos factos. Palpito que a imprensa sairá particularmente reforçada desta luta de forças. Oxalá que sim.
Um artigo que publiquei logo a seguir à eleição provocou, da parte de uma amiga colunista na imprensa portuguesa, um comentário céptico avisando-me que contivesse o meu optimismo. Respondi-lhe mais ou menos nos seguintes termos que hoje ainda sinto poder sublinhar:
Tens razão quanto a Trump poder fazer estragos imensos. A minha análise incidia em parte sobre não ter sido tanto Trump a ganhar, como Hillary a não ter conseguido arrastar mais gente. Foi ela que perdeu e não ele que ganhou (lembro-me da velha piada: Deus quando criou o mundo voltou-se para a sua direita e disse “Crescei e multiplicai-vos!” e para a esquerda: “Crescei e dividi-vos!”). O pior é que Trump acabou mesmo chegando ao topo e agora há que controlar os danos (control the damage, como os americanos gostam de dizer). Uma coisa é ser optimista e outra é ter esperança. Tenho mais esperança do que optimismo. Ter esperança não é ter fé: é não desistir de pensar que vale a pena – e é importante – continuar a lutar. O optimismo por vezes leva à desistência de intervir, por se ter fé que tudo há-de correr bem. Não é o meu caso. Muita coisa vai correr mal. O importante será diminuir o volume dos estragos servindo-nos dos meios ao alcance das instituições democráticas, para que não sejam muitas nem desastrosas as trumpalhadas. Limitarmo-nos a lamuriar o leite derramado não terá qualquer consequência positiva.
Convém evitar previsões apocalípticas. Se Richard Rorty acertou profetizando uma onda de ressentimento, terá exagerado na dimensão dela (ao menos pelo que parece até ao momento).
Onésimo Teotónio Almeida
NOTA: Artigo publicado,originalmente, no JL de Lisboa e aqui reproduzido com a autorização expressa do Autor, a quem agradecemos muito.