“Tudo me dói como se fora medo”
Francisco sentia constantes dores provocadas pela esclerose múltipla e pelas artroses. Fora coronel do exército. Homem duro e implacável, sempre e com todos. Nunca temera perder a vida e em cenários de guerra, chegara mesmo a matar sem culpa, mas agora com a doença a miná-lo tinha receio, temia que a própria morte lhe passasse à beira e se esquecesse de o levar.
Nascera pobre, numa aldeia perdida na serra. Conhecera em tenra idade a dureza do trabalho do campo. Cultivara, semeara, sachara, guardara rebanhos, tirara cortiça, serrara lenha… Aos doze anos, não havia trabalho que não tivesse feito.
Foi então que a sorte lhe sorriu e pôde virar as costas à miséria e à dureza da vida: um tio que vivia em Lisboa e que havia perdido um filho, passado o desespero do luto, ofereceu-se para lhe pagar os estudos no Colégio Militar.
Fora precisamente nesse estabelecimento de ensino que se iniciara na estratégia militar. Aprendera verdadeiramente a jogar, no verdadeiro sentido da palavra.
Mais tarde, devorara “A arte da Guerra” de Sun Tzu e assimilara-lhe todos os ensinamentos. Aliás, os cinco princípios fundamentais estavam sempre presentes na sua mente: a conduta, os céus, a terra, a disciplina e o comando.
Durante a guerra colonial, comandara, com mão-de-ferro um pelotão na Guiné-Bissau, território complicado para os soldados portugueses, pelas próprias condições geográficas e inóspitas do terreno, pleno de armadilhas desconhecidas, de pântanos ocultos e de areias movediças.
Muitas vezes o passado irrompia, cravando-lhe as garras na memória: a praia paradisíaca de Bubaque, uma das ilhas Bijagós: a cerimónia do fanado: tambores a rufar sons de alma, corpos ondulantes, agitando-se num frenesim despreocupado, belas estátuas humanas de ébano feito, luzentes de óleo de palma. Um menino sorridente, roendo uma manga…de repente: fogo, estrondos, um terramoto de carne, pó, areia, membros decepados e o menino jaz no chão, inerte. O sangue fundia-se com as pétalas das acácias rubras e jorrava numa torrente dolorosa… Acordava e o que lhe escorria do corpo não era sangue, mas sim suores frios. O alívio durava pouco. Bastava entregar-se ao sono e, de novo, os fantasmas lhe saqueavam as poucas horas de tranquilidade. Não conseguia entender porquê. A sua função era dar ordens de ataque e dera. Fizera aquilo que fazia sempre nos matos que rodeavam Bissau. Mas ali, parece que era território de paz, mas ele estava programado para a guerra. Não, nunca fora capaz de entender o que se passara.
Vivera única e exclusivamente para o exército. Nunca casara, tivera poucas namoradas e relações marcadas sempre pela pouca duração e notável distância.
Do mesmo modo, o relacionamento com os outros era, geralmente, problemático, pois julgava sempre que o traíam ou conspiravam contra si. Só em idade avançada soubera que, os episódios de paranóia intermitentes, dos quais sofria, eram um dos sintomas do síndroma de Asperger, também denominado “autismo de alta funcionalidade”, que se reflectia numa profunda “cegueira emocional”.
Tal facto explicava a sua dificuldade de relacionamento com os outros, a incapacidade de lhes olhar nos olhos quando lhe falavam. Do mesmo modo, era incapaz de compreender a ironia, as piadas ou qualquer tipo de brincadeira, pois interpretava sempre tudo no sentido literal.
O seu quotidiano era composto por uma rotina rigorosa: os comportamentos diários eram sempre rigorosamente os mesmos, como se fosse um robot.
Uma das suas apaixonadas fora um caso doentiamente platónico. Conhecera-a num restaurante, onde ela costumava almoçar e, por não ter mesa, pedira-lhe licença para se sentar junto dele. Ele aceitou e começaram a conversar descontraidamente. Soube que ela era professora numa escola secundária próxima dali.
Na sua mente, aquela breve conversa de circunstância teria equivalido a uma declaração de amor. Por isso, durante mais de um ano, perseguiu incansavelmente a rapariga. Soube onde ela morava, em que parque passeava o cão, onde fazia compras, quando e a que horas. Sabia o horário dela todo de cor. E sempre que tinha algum tempo livre, tornava-se numa sombra dela.
Além disso, enviava-lhe prendas pelo correio e escrevia-lhe cartas apaixonadas que lhe deixava no pára-brisas do carro. Ponderava, inclusive, casar com ela, e até já tinha marcado uma data e um local.
Ela resistia sempre, desprezava-o, num momento de desespero, chegou mesmo a insultá-lo desabridamente. Todavia, isso só lhe aumentava o interesse e a paixão.
Até que um dia, ela desapareceu misteriosamente, deixando-o destroçado pela sua paixão inventada. Sentira-se traído, com a certeza de que uma força superior conspirava contra ele. Nunca mais quisera amar ninguém e enclausurara-se no seu quartel, vivera para o seu exército, até ao momento em que a esclerose múltipla o atirara para uma cadeira de rodas e para aquele Lar da Terceira Idade, onde se encontrava há mais de três meses, sem trocar uma palavra com ninguém.
Agora que já não podia exercer o seu comando, o que sentia era receio, porque mais tarde ou mais cedo aquela gente daquele lugar onde vivia ia conspirar contra ele, destruí-lo e aniquilá-lo. A sua mente era uma caixa negra, blindada, impermeável a qualquer nesga do sol.
O fim estaria eminente e ele não tinha armas para se defender. O seu pensamento era sempre o mesmo, obsessivo constante, prisioneiro da jaula em que se convertera o seu próprio corpo: “Tudo me dói como se fora medo/ou ânsia de ficar aquém da morte”.
In A oeste do Paraíso (adaptado), ed. Emooby, 2012.
Dora Nunes Gago