Two tales of a city
Generalizações, nem no fim seria uma melhor apropriação do romance de Dickens para estas linhas sobre Portugal. A gente rola país dentro e acumula caras, frases, gestos, flashes. A tentação é encaixá-las num quadro, mas isso só é legítimo se o pintamos complexo, contraditório, díspar e insubmisso. Ficam, de entre uma miríade delas, duas estórias nos antípodas uma da outra.
Estória #1 – Estrada fora no Land Rover de um antigo aluno (faz questão de mo emprestar), farto de saber que usa gasóleo, distraio-me e começo a enchê-lo de gasolina. Dou cedo pela palermice, mas há que fazer limpeza ao depósito. Felizmente estou numa estação de serviço de autoestrada com uma pequena oficina. Operada por um único funcionário, sou também o único cliente. Tive de bater à porta. Pareceu-me não estar ninguém lá dentro. Só percebi a demora quando deparei com uma cara estremunhada, aborrecida pela chatice de ser acordada de uma repousante sesta.
Morosamente, o mecânico iniciou a operação de limpeza do depósito chupando por um tubo e enfiando-o depois numa vasilha. Cigarro dependurado na boca muda, foi sentar-se lá dentro enquanto eu, cá fora junto ao jeep, observava a transfusão que me parecia não ocorrer. O tubo era de plástico transparente e não revelava sinais de fluxo de qualquer líquido. Comuniquei-lhe isso mesmo. Nem se dignou erguer do banco. Deixou apenas escapulir entre dentes um Leva o seu tempo. Fui acender as luzes do tabelier a ver se detectava sinais de descida no ponteiro do depósito. Nada. Passei também essa informação. Desta vez, respondeu: Há veículos assim. Regressei ao jeep onde continuei sem topar vestígios da menor actividade. Mordendo os lábios para evitar jaculatórias que irritassem o mecânico, conformei-me mais uma vez graças ao controlo mental movido pela ideia de que a estação mais próxima ficava a quarenta quilómetros. Resignado, portanto.
O nosso homem, numa lentidão de assustar lesmas, atirou a beata para a erva seca aquecida por um sol escaldante a poucos metros da vasilha de gasolina, e acendeu outro cigarro.
Pouparei o leitor à descrição de duas horas de repetidas cenas para não cair na tentação de reproduzir em tempo real as clássicas imagens do filme Os cavalos também se abatem. Aqui, porém, o real é que ocorria em câmara lenta.
Estanco neste ponto acrescentando apenas: No final, custo zero. E o homem agarrou de uma saca, fechou a oficina e foi-se. Eram quatro da tarde.
Estória #2 – Chegámos a Braga ao fim do dia. Eu, de secretário da Leonor, era ela quem ia botar palavra num colóquio na Universidade do Minho. Estacionei diante do hotel e dirigi-me ao parquímetro para colocar algumas moedas. Aproximou-se um simpático cavalheiro e avisou-me na mais civilizada das maneiras: Olhe, não ponha muito dinheiro. Faltam vinte minutos para as 19h e, a partir dessa hora, o estacionamento é grátis. Apercebi-me então de que me falava um agente distribuidor de multas de estacionamentos e senti-me aparvalhar ante tal franqueza. Que, aliás, estava longe do seu máximo porque, face ao meu agradecimento algo desconcertado e surpreso, continuou: Mas cautela amanhã. Não sei a que horas se levanta, no entanto deve tomar cuidado porque a partir das nove já pode apanhar multa. Eu, confuso e confundido: Muito obrigado por tão amável informação, e ele a prosseguir imperturbável na sua bonomia nortenha: Mas não se preocupe. Eu nunca chego a esta parte da cidade antes das dez.
Porque escrevo já do Maine, e depois de um lanche de lagosta (a preço das nossas sardinhas) e uma maçaroca de milho cozido a acompanhar, recordo outra também deste Verão: Açores, S. Miguel, Furnas. Um trabalhador local cozia milho numa caldeira. Perguntei-lhe quanto tempo demorava a cozedura.
– As maçarocas, uma hora e meia. Os dedos, um segundo.
Onésimo Teotónio Almeida
(Originalmente publicada na revista LER de Setembro,013)