Última homenagem a um Pai muito especial
Querido Pai, não sabes?
Tu, o Homem de letras, tu que tão bem sabias transmitir para o papel sentimentos e emoções quase impossíveis de transmitir, tu que conversavas tanto connosco sobre tudo, partiste mudo e nunca mais nos falaste. Foste em silêncio, de mansinho, sem querer incomodar ninguém.
Vim dormir com a mãe na tua/nossa casa para ela não ficar sozinha.
São 4:15h da manhã. Não conseguia dormir e estou no teu quarto vazio onde tudo me fala de ti. Num canto, a aparelhagem com todos os CD’s alinhados onde predominava o “nosso Beethoven”. Por todo o lado, livros com que desde sempre me habituei a ver-te. Nunca te vi sem eles. Em cima da cómoda, o teu amigo de eleição, Eça de Queirós. Na mesinha de cabeceira, a biografia de Beethoven ao qual chamavas um Deus ou uma força da natureza. Reparo que no canto, junto à estante, deixaste a tua bengalinha e os sapatos ainda com as peúgas dentro. Na cadeira, a roupa que despiste ainda com o teu cheirinho inconfundível.
Mas há um silêncio inquietante no ar: a ausência, para sempre, da tua voz. Nós já tínhamos reparado nos últimos meses que tu, que eras um conversador nato e brilhante, com um carisma muito especial, andavas cada vez mais calado, cada vez mais alheado, como que a despedires-te da vida e das suas banalidades.
A tua maior alegria era juntarmo-nos todos. Adoravas a família com um amor incondicional. Tu e a mãe transmitiram-nos valores inestimáveis de tolerância, respeito e amizade. Tinhas amigos como pouca gente se pode gabar de ter.
Vais-nos fazer muita falta. Tanta, que nem tu conseguirias descrever!
Mas há uma pessoa, pequenina em tamanho mas com o interior da dimensão do mundo, que foi muito, muito especial na tua caminhada: a tua Linda, a tua pequenina, como lhe chamavas com muita ternura. Essa perdeu a sua metade, o seu outro eu. Vocês completavam-se de um modo muito especial. Tu eras a paixão, a ternura, a inquietação. Ela a paciência, o amor, a protecção, o porto seguro a que tu tinhas que recorrer para te banhares nas águas claras da sua paz. Mas descansa Pai, tu sabes, nunca a deixaremos sozinha.
Orgulho-me muito de ser tua filha. Foi-se o meu pai, um artista, um esteta. Tu que adoravas as coisas belas nem vais acreditar no que te vou dizer, sabes?
Um enterro, para mim e para qualquer pessoa normal, é uma coisa tenebrosa e eu, que sempre lidei mal com a morte, e tu sabias disso, eu que tinha horror em perder-te, eu que nunca deixei de ser pequenina ao teu lado, quase desisti, quase pensei fazer o que Chopin fez com os pais: Fugir no último minuto, fugir a ver-te seres engolido pela terra. Mas houve algo que eu não consigo explicar.
O teu enterro foi suave e belo, se assim se pode dizer. Vou-to descrever: o céu abriu-se com um sol excepcional; a tua campa mais parecia um jardim suspenso, repleto de lindas flores, e até os pássaros chilrearam em teu redor. Tu adoravas o seu canto e isso deu-me uma paz inexplicável.
À tua volta, criou-se um elo de amizade com todos nós, família e amigos de todas as idades, num silêncio cheio de unção e respeito como se, de facto, fosse a enterrar, não um homem qualquer, mas um sábio. Soubeste, acima de tudo, viver os teus sentimentos e transmiti-los por palavras e carinhos. Beijavas-nos a todos, esposa, filhos, netos e bisneta com uma ternura que não se gastava; isso é o maior legado que nos deixaste: A força do Amor.
Para nós não partiste. Continuarás a viver sempre em cada gesto, em cada reunião de família. Em cada presépio que fizermos, estarás sempre presente.
Tu que adoravas o Natal e nos transmitiste o valor da tradição, tu que dizias sempre: ” O pai natal é uma invenção americana. Esta é a festa do Menino Jesus.” estás agora nos Seus braços. Estás com o Deus que soube dar-te a morte digna a que tinhas direito.
Obrigada por tudo.
Adeus Pai
Tua até à eternidade,
Ana Isabel