O RATO NA BALANÇA
A luita foi no pátio do Grupo Escolar. Talvez eu o vencesse, mas Carlinhos, meu colega de classe, era muito esperto e começou a bater em mim com um fio elétrico, deixando minhas pernas cheias de manchas vermelhas. Doeu muito. Mas doeu ainda mais ser vaiado por seus comparsas. Naquele dia todos os meus poucos amigos haviam faltado à aula.
Carlinhos jogava no time que dali a alguns dias enfrentaria o nosso e não perderia por esperar. Eu era meia-direita, meu modelo era Didi. Sabia que o príncipe etíope era uma elegância só. E procurava imitá-lo em campo. Mas eu só sabia dele pelo rádio. Jamais eu vira uma única jogada de Didi.
Na semana seguinte, meninas e meninos foram à beira do gramado para a sensacional peleja. O nosso goleiro era Semenrique, enorme e gordo e, coisa surpreendente, com uma agilidade extraordinária. Seu modelo era Gilmar. “Agarra, Gilmaaaaaaaar!”, ele gritava quando pegava qualquer bola, por mais fraca que fosse.
Naquele dia, porém, não sei qual foi o espírito de porco que amarrou dois pés de capim à direita de onde ficava o goleiro. A jogada começou assim: tomei a bola de Arturzinho e passei a Moacir. Este começou a rir do tombo que Cacildo tomou quando correu em sua direção. Enquanto ele ria, Carlinhos tomou a bola dele e disparou no rumo do gol. O campo era pequeno, tudo foi muito rápido. O chute saiu fraco, mas Semenrique, o nosso goleiro, tropeçou no capim amarrado e caiu com a cara na grama, de uma forma ridícula. E ainda por cima começou a chorar.
A juíza era uma das professoras, a dona Estela, a primeira a usar calça comprida naquela cidade. Apitava as partidas vestindo eslaque. Não procurem no dicionário. Era slack, que em inglês significa frouxo. Designava as primeiras calças compridas que as mulheres brasileiras mais moderninhas começavam a usar, tão logo terminara a segunda guerra mundial.
Corremos para dona Estela, o nosso Armando Marques de saias. Linda aquela mestra! Eu tinha paixão por minhas professoras, mas a minha preferida era outra, que tinha um cheirinho bom e me alfabetizara. Seria fiel a ela a vida inteira porque os prazeres que a escrita me deu, sem exagero posso dizer que poucas mulheres me deram ao longo da vida. Ou melhor: se não fosse eu saber ler, não teria aprendido a amar as minhas amadas. Nem aquelas de minha infância profunda, quando nasciam em mim os mais puros do amores, sem sexo, com toques e carinhos, nem todas as outras que vieram depois, com sexo, sem toques nem carinhos, e com sexo, toques, carinhos e outras essências que descobri mais tarde e que apenas umas poucas tiveram. Uma delas ficou minha namorada para sempre. Para sempre, eu digo, é até agora. Porque também na vida, como no futebol, uma jogada de um segundo pode mudar uma partida inteira.
Voltemos a dona Estela. Passou a mão em meu rosto suado, esfregou meus cabelos e disse: “aprenda uma coisa, menino, você que não é tão burro: futebol tem regras e o juiz não pode apitar falta de capim amarrado, entendeu? O que não é proibido, pode fazer! E não é proibido amarrar o capim que o goleiro pisa!”
Deveria ser por razões análogas que ela namorava o farmacêutico, um homem casado. No regulamento do Grupo Escolar não havia nenhuma regra que proibisse dona Estela de namorar farmacêuticos ou homem casados, nem que os dois ofícios fossem combinados.
E para o segundo gol, qual foi a desculpa de Semenrique? Um frango daqueles, a bola veio rolando, rolando, rolando e passou entre as pernas gordas de nosso goleiro. Ele disse: “eu ia pegar ela, mas ni que eu vi, puft, ela passou redondinha, vai ser difícil virar esse jogo!”
Virar? Tomamos mais dois logo no início do segundo tempo. Fiquei distraído com aquele carinho de dona Estela e passei a jogar perto do juiz, se é que me entendem, porque a blusa saiu para fora do eslaque e eu passei o tempo todo de olho na barriguinha e nas costas de dona Estela. Jamais pensara que professora também tinha umbigo! No segundo tempo fiquei mais atento ainda a outros movimentos: o dos seios de dona Estela, balouçando entre os meninos.
(Continua…)
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* Sobre DEONÍSIO DA SILVA:
O escritor catarinense,nascido em Siderópolis, alcançou projeção internacional com o romance Avante, Soldados: Para Trás, que recebeu em 1992 o Prêmio Casa de las Américas em júri presidido por José Saramago. Como contista, porém, estreara muito antes, em 1976, pelas mãos de outro grande escritor, Rubem Fonseca, que levou os originais de Exposição de Motivos, depois transposto para a televisão. Desde 1992, sua obra está sendo reunida no complexo editorial da Siciliano que, sob os cuidados de uma equipe dirigida por Pedro Paulo de Sena Madureira, já publicou vários de seus trinta livros, como os romances Teresa, A Cidade dos Padres, Orelhas de Aluguel, Os Guerreiros do Campo, diversos livros de contos, além de livros infanto-juvenis e De onde vêm as palavras e A Vida Íntima das Palavras.