Mais tarde vim a compreender todos os encantos daquela professora, sobretudo os ocultos, porque o farmacêutico separou-se da mulher, matou um homem que mexeu com sua amada, saiu dali e foi viver no costão, plantando banana, milho, feijão, uva. E dona Estela amarrava um lenço na cabeça e sem perder a elegância ia para a roça. Tiveram dois filhos. Nos fins de semana, os filhos do outro casamento do farmacêutico iam visitá-los, a criançada brincava feliz que nossa! O único que os amaldiçoava era o padre, mas este amaldiçoava todo mundo que não concordasse com ele. No começo, ele tinha grande autoridade, mas depois que o povo descobriu que ele se encontrava às escondidas com a mulher do açougueiro atrás do altar, pediram para que o Bispo o transferisse dali e mandasse um padre velho, porque padre novo dava muito problema. “Que problema?”, ousou perguntar um dia uma senhora desavisada. “Os problemas da carne”, respondera uma senhora do apostolado da oração. Na época, muitos de nós pensamos em roubo de peso no açougue, porque o açougueiro era muito amigo do padre e dava carne de graça para ele todos os dias. Sempre o melhor pedaço. Também era o melhor pedaço que sua esposa oferecia ao padre nas tardes vazias daquela cidade tão pequena e, por isso mesmo, tão cheia de fofocas.
Dona Estela chegou-se perto de mim, não precisou se esforçar muito, eu estivera toda a partida ali por perto dela, e me disse com aquela sua voz de cetim, seus grandes olhos negros: “e tu? Não vais fazer o teu gol?” “Tenho medo do Carlinhos”, eu disse, “ele é muito bruto e semana passada me deu uma surra com um fio elétrico”. “Mas aqui no campo é diferente, se ele te bater ou derrubar, é fau”. Naquele tempo não se dizia falta, se dizia fau. O inglês ainda dominava o futebol. E mesmo Semenrique, quando escolhia a posição, não dizia goleiro; berrava: “o quíper sou eu!”
Recebi a bola de Moacir. Não pude dominar direito, então toquei ao lado de um zagueiro deles, corri pelo outro lado, tomei a bola adiante, esse drible era chamado de meia lua, o zagueiro escorregou, todos riram muito e gritaram, segui em disparada em direção ao gol deles, eu queria fazer o meu de qualquer jeito, o Moacir apareceu de repente ao meu lado, pedindo a bola, livre dentro da grande área já, mas eu não passei a bola para ele e — vejam só! – quem aparece na minha frente, o último menino antes do goleiro? Justamente o Carlinhos! Não sei quanto duraram aqueles pequenos momentos que eu não sabia ainda medir na vida, frações de segundo, mas eu era péssimo em frações na aula, aqueles números em cima e embaixo de travessões me confundiam, não eram como as letras, que a gente só precisava cuidar bem delas na caligrafia, num caderno de pautas, que trazia dois carreirinhos, um para cada tipo de letra. Só sei que eu fiz que ia e ouvi o Carlinhos ameaçar “tu faz que vai, mas não vai e eu te pego pelo outro lado”. Mas eu fui pelo mesmo lado porque num daqueles minúsculos e exatos momentos me lembrei do Garrincha, que ia para aonde ameaçava ir, pela direita, por onde sempre saía, fiz o mesmo e chutei de pé esquerdo, mesmo não sendo canhoto, porque não dava tempo de trocar. A bola saiu mascada, mas passou pelo Carlinhos, que ainda teve tempo de se virar, passou pelo goleiro deles e entrou enviezada e torta lá no cantinho. 4 x 1 para eles, mas o meu eu fiz. Corri para dona Estela e nunca mais me esqueci daquele abraço.
A psicóloga disse que nasceu aí minha paixão por mulheres mais velhas do que eu. Não posso vê-las, sinto um aperto no coração, vontade de celebrar alguma coisa. Na última vez que fiz isso na rua com uma desconhecida, eu disse: “posso abraçar a senhora? É sem maldade!” “Mas aqui?”, ela disse, “aqui no meio da rua?” “Aonde a senhora quiser”, eu disse. Ela falou de soslaio: “você disse que era sem maldade!” “Mas é sem maldade”, eu disse, “pode ser ali naquele cantinho, perto do Banco do Brasil, em frente ao correio”.
Entardecia. Agarrei aquela mulher de blusa branca e saia preta, de cabelos molhados, ela também me abraçou e disse: “eu não entendo mais os homens”. Eu disse: “eu também, eu não entendo mais o mundo, como ele é diferente do que eu imaginava em minha infância!”. “Sua infância?”, a mulher perguntou. “Sim”, eu disse, “sim, sim, sim,”, eu repeti bem agarradinho, sim, dona Estela, eu jamais esqueci da senhora!”
Por que fui dizer isso? Estraguei tudo, como homem é bobo, mulher gosta de segredo, é por isso que todas escondem a idade, para terem pelo menos um segredo, e eu só confio em mulher que esconde a idade, porque é capaz de guardar uma confidência. Ela me empurrou, soltou-se daquele abraço, porque abraçado a gente só vê as costas e a bunda da pessoa, e ela queria me olhar nos olhos, e me disse com seus dois grandes olhos negros molhados daquela luz eterna que a alumiaria a vida inteira: “é você?” Eu falei: “sou eu, a vida continua de 4 x 1 para eles, mas o meu eu fiz, o meu eu venho fazendo sempre que posso!”
Dona Estela saiu caminhando pela calçada, depois que me deu seu telefone. Os mesmos saltos, o mesmo taque-taque nas pedras. Apesar de eu preferir a música dos clássicos para escrever, me vieram à mente esses versos: “Garrincha, Didi, Vavá/ na linha são os primeiros/ com Zagalo e Pelé/ atacantes pioneiros”.
(Continua…)