Jamais tive oportunidade de dizer a Garrincha, a Didi e a Vavá que eles me ajudaram a ser escritor, a ser professor, a estudar, a lutar, a virar partidas, ou ao menos a fazer o nosso! Eu torcia para o Botafogo. A linha de nosso time era a da seleção brasileira: Garrincha, Didi, Quarentinha, Amarildo e Zagalo. Carlinhos torcia para o Santos. A linha do Santos: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Carlinhos não era fraco, não!
Mas a memória, que em mim brota todos os dias, às vezes mistura as datas. Pois em 1962 foi quase a mesma coisa. Em 1970, de novo. Demos um baile no Chile, repetindo o glorioso feito da Suécia, e depois também no México, devem estar fazendo Comissões Parlamentares de Inquérito até hoje na Suécia, na Tchecoslováquia, na Itália, no Japão e na Coréia para levantar os verdadeiros culpados daqueles cinco países que entregaram o jogo para a gente: 5 x 2 na partida final na Suécia, contra os donos da casa; 3 x 1 em cima da Tchecoslováquia; 4 a 1 sobre os italianos em 1970. Nos EUA, quando ficamos tetracampeões, não teve a mesma mágica porque já andávamos muito exigentes num tempo em que não podíamos exigir tanto, e também porque empatamos com a Itália, decidindo o título nos pênaltis. Ou porque éramos outros, não sei ao certo. E em 2002, na Ásia, vencemos os alemães na final e todos passaram a dizer: todo mundo tenta, mas só o Brasil é penta.
E sabem o que dona Estela me disse a última vez que nos encontramos? Que Carlinhos é cartola! “Ele era boiola”, eu disse, “ele e o Semenrique, todos sabiam”. “O Semenrique é cabeleireiro numa cidade aqui pertinho, eu já arrumei meu cabelo lá”. “Ele deve ser um grande cabeleireiro”, eu disse, “se bem que com a senhora é fácil deixar seu cabelo bonito, porque a pessoa inteira é”. “Pára com isso”, ela me disse, “você disse que era somente um abraço.” “Agarra, Gilmaaaaaaar!”, eu disse, mas dona Estela ponderou: “cuidado, o outro ficou boneca.” “Não ficou quem sempre foi”, eu disse.
E tudo isso escrevo para dizer que eu nasci em 1958. Dez anos depois de ter vindo ao mundo.
Mas dona Estela, que veio me esperar em outra idade, quando nós dois também já éramos outros, sendo os mesmos, que me tem dito e feito coisas prodigiosas, depois de nosso célebre reencontro, tem outra explicação para tudo. “Como é mesmo o nome daquele autor que você citou outro dia, dizendo que a gente nunca sai da terra?” “São João”, eu disse. “Você lembra a frase inteira? Aliás, do que você esquece?” “O que é da terra, fala da terra, volta para a terra, não sai da terra”, eu disse. “E o autor ainda ficou santo!”, me disse ela. “Santo não é aquele que foi para o céu?” “Pode ser que o céu seja na terra”, eu disse, “pois quando amamos de verdade, é nele que parecemos estar, pelo menos é assim que nos sentimos, não é?”, perguntei afirmando. “Nada disso. Você, naquele dia em que nos abraçamos, lembra como oscilamos de leve, sem que os outros ao redor percebessem? Você balançava meu corpo devagarinho, balançava o seu, fazendo balançar tudo ao meu redor, eu deveria saber, mas quando fui sua professora jamais liguei uma coisa com outra, você é Libra, o outro nome de Balança, faz balanço de sua vida a vida inteira e um dia vai me abandonar, embora me diga o horóscopo que Libra é fiel. Fiel ao modo dos nascidos sob esse signo. Voltam sempre ao mesmo porto de onde partiram, mas o que mais sabem fazer é navegar mar afora, navegação de cabotagem, sem grandes aventuras. E no chinês você é Rato. Rato da Terra. Ai, meu Deus, estou perdida! E um dia vou te destruir, está escrito nas estrelas do zodíaco, previsto por antigos sábios da China e da Babilônia, que nós dois não combinamos”.
Falou tudo de um jato só. Era ao entardecer, a hora mais agradável do dia, pássaros gorjeavam na varanda onde estávamos, um chinchila nos contemplava silencioso. E aquela não era a primeira vez que ela se feria ao falar de nós.
“À semelhança do morcego, eu também sou mamífero. Mamífero é assim, precisa de carinho, ainda mais sendo bicho voador, de hábitos noturnos”, disse eu. “Estela, minha estrela, posso dizer com segurança, como fez Maria quando sua prima Isabel a visitou, a senhora faz em mim maravilhas!”
Minha amada era muito querida e demonstrava isso com shows de delicadezas, a começar pela atenção que prestava às palavras que eu dizia. “Como todo homem diante das mulheres, qualquer que seja ela, mas muito pior se for a sua amada, o morcego não vê nada na noite escura, pois é quase cego. Como se salva, então? Faz como São João da Cruz, que se salvava rezando? De jeito nenhum. Morcego, palavra que veio do latim e significa rato cego, emite ondas para desviar-se de obstáculos durante o vôo. Posso dizer, então, que ele se desvia da maldade, escutando seus inimigos”.
“Morcego? Escutando? Você, o que mais faz é falar como um papagaio! E eu sou seu obstáculo?”, me perguntou Estela, sorrindo com verve, como sempre.
“Sim, você é meu grande obstáculo”, eu disse, “a principal barreira que tenho na vida, é o baluarte que me impede que eu abrace o abismo e mergulhe nas trevas infinitas de onde todos viemos, reintegrando-me à divindade cujos desígnios insondáveis me trouxeram ao mundo”.
“Afinal, você é rato, morcego ou deus?” ‘Todos somos deuses”, eu disse, “mas só quando queremos, pois todos os dias fazemos tudo para negar a transcendência que nos foi dada como o maior presente desta vida”. (xx)
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