Um diário das ilhas de bruma
É costume (e eu pratiquei-o) abrir conversa, escrita ou oral, sobre o diário como género literário, referindo-se o seu pouco cultivo nas letras pátrias. Menciona-se inevitavelmente Vergílio Ferreira e Miguel Torga como excepções à regra. Mais recentemente, Saramago. Os mais informados acrescentam os nomes de Manuel Laranjeira, Sebastião da Gama, Mário Sacramento, João-Palma Ferreira – e deveriam adicionar, entre outros, Cristóvão de Aguiar e José Leon Machado. Os pouquíssimos observadores da realidade açoriana incluem Fernando Aires. E no entanto o género vai ganhando cultivadores entre nós. O mais recente na minha lista de leituras foi o Diário da Abuxarda, de Marcello Duarte Mathias, um pacote de belas e saborosas páginas repletas de reflexões batidas pela vida e embrulhadas em elegante prosa. Antes dele, foi o Diário Íntimo de Carlos da Maia (1890-1930), engenhosa criação de A. Campos Matos, já com duas edições. Em reedição também, circula agora o Não Percas a Rosa, de Natália Correia que, na altura do seu primeiro aparecimento, não só não recebeu a devida atenção como, por razões políticas, foi mesmo marginalizado. Também em reedição, está de fresco nas livrarias o diário Era Uma Vez o Tempo, de Fernando Aires, infelizmente pouco conhecido fora dos círculos açorianos e açorianófilos. E todavia só os primeiros dois volumes foram publicados em Ponta Delgada, terra natal do autor, em 1988 e 1991. Os restantes três foram editados em Lisboa, em 1993, 1997 e 1999, na Salamandra, uma editora “açoriana” que na sua dúzia de anos de existência, publicou mais de uma centena de títulos, quase todos de autores daquelas ilhas férteis em vulcões, terramotos, vacas e livros.
Fernando Aires nasceu e faleceu assolapado à sua ilha, S. Miguel (1928-2010), de onde, para além de poucas viagens, apenas saiu quando teve de ir a Coimbra formar-se em Histórico-Filosóficas, e ao Porto para mais dois anos de estágio. Logo depois, apressou-se a regressar aos Açores, leccionando durante muitos anos no Liceu Antero de Quental, na Escola do Magistério Primário e, depois, na Universidade dos Açores como Assistente-Convidado.
Desde cedo interessado em literatura, fundou com um grupo de amigos o Círculo Literário Antero de Quental e fez parte do grupo Jade (nome do bar local onde se reuniam), que nos anos 40 tentou agitar as estagnadas águas da sua cidade naqueles anos de isolamento e salazarenta paz.
Tendo embora feito incursões várias pela história cultural açoriana (sobretudo pela publicação de um estudo a acompanhar a edição de cartas de José do Canto, notável figura do século XIX insular) e na ficção (contos), foi o aparecimento, em 1988, do primeiro volume do diário Era Uma vez o Tempo, que convocou sobre ele as atenções dos leitores e críticos que à obra tiveram acesso; já que foi, tal como o segundo volume (1991), publicado pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada, com uma limitadíssima rede de distribuição, quase sem alcance para além do mar açórico. A partir de 1993 e até 1999, os restantes volumes do diário surgiram em Lisboa na atrás referida editora Salamandra.
Nunca desde Raul Brandão os Açores tinham sido tão habilmente pintados em palavras. Fernando Aires emergiu assim como um extraordinário artista capaz de captar o tempo açoriano na sua transformadora influência sobre a paisagem e o ambiente humano, tão peculiares e marcantes. As páginas do seu diário estão repletas de quadros, em parágrafos reveladores de um domínio do verbo e dos segredos da língua capaz de penetrar as abscônditas cavernas da ilha e dos seres humanos e desenhá-los no papel a cores e ao vivo.
Fernando Aires viveu incrustado na sua ilha, entre Ponta Delgada e a Galera, no extremo mais sul da sua terra natal, onde construiu uma casa de refúgio, como se Ponta Delgada fosse uma Nova Iorque ou uma Paris a exigir retiros. Mas a verdade é que funcionava como tal. Ali, numa colina voltada para o mar do ilhéu de Vila Franca e, a fechar o cenário, a serra de Água de Pau escondendo nas suas entranhas a idílica Lagoa do Fogo, Fernando Aires refugiava-se a conversar com o vento, com as aves (entre elas, D. Fuas, o milhafre que o visitava amiúde), os hibiscos e os metrosíderos, as camélias e os incensos por onde a chuva se infiltrava para levar à terra a fúria de verde que embebeda a paisagem circundante.
O diarista agarra a ilha por dentro, aperta-lhe as veias a sentir-lhe as pulsações. Sonha-se europeu e declara-se parisiense, mas acaba quase nunca saindo do seu ninho ilhéu, deixando a paisagem da sua imaginária modernidade quedar-se pelas viagens mentais, pois é-lhe custoso desentranhar-se daquele espaço. Esse e outros dilemas humanos surgem narrados num vernáculo de sabores bebidos nos clássicos, mormente Eça, seu santo de eleição e patrono. As frases soltam-se das páginas salpicadas de bruma e de luz, de sol e chuva, de mar e verde, moldados em quinhentos anos atlânticos, com a ilha a caminho da América mas com o diarista voltado para a Europa, que nele significa Paris e Coimbra. Sempre ao longe, porém. Perto, só a ilha na sua eternidade que vem de um profundo mar impenetrável, onde residem baleias, se fabricam terramotos e nascem tempestades e vulcões.
Um dia, conversando com um poeta português de minha admiração, eu trouxe por acaso à baila o nome de outro poeta de excelência, Emanuel Félix, que toda a vida sepultou requintados poemas no mar da sua ilha Terceira. O meu interlocutor reagiu sobranceiramente: Se ele fosse bom, eu conhecia-o! A mim descaiu-se-me de repente o maxilar inferior em abrupto espanto porque, de uma figura inteligente, esperava no mínimo o pedido de um poema ou dois para demonstrar as razões do meu apreço. Essa cena, que me marcou nos meus verdes anos e me instruiu devidamente sobre as arrogâncias intelectuais inconscientemente exibidas por sumidades da nossa praça literária, salta-me agora para estas linhas como exemplo prototípico do oposto da atitude esperável de um espírito aberto. Do leitor que nunca ouviu falar de Fernando Aires nem do seu diário Era Uma Vez o Tempo, só espero a abertura mental de querer descobrir por si os motivos da publicidade aqui gratuitamente feita. A aboná-la – são sempre recomendáveis as abonações de gabarito – está o nome de leitores como Eugénio Lisboa, José Augusto Seabra, João de Melo, Eduíno de Jesus, Teresa Martins Marques, José Leon Machado, Fernando Venâncio, Ascêncio de Freitas e Vergílio Ferreira, que se comportaram bem diferentemente do dito poeta, ao depararem pela primeira vez com as belas páginas deste grande diário da literatura portuguesa agora reeditado em volume único, numa atraente edição da Opera Omnia. O mais recente admirador é Luís Maria Marina Bravo, ex-conselheiro Cultural da Embaixada de Espanha em Lisboa, que até se pôs a traduzir o primeiro volume e já tem um editor contagiado pelo seu entusiasmo.
Onésimo Teotónio Almeida
(*) Texto lido pelo Autor na apresentação do "Era uma Vez o Tempo" de Fernando Aires,edição da Opera Omnia, volume único, organização e comentários de sua filha Maria João Ruivo, nas cidades de Lisboa, Porto e Ponta Delgada entre os dias 10 e 13 de Dezembro.