Um Livro de Paixões: a escrita diarista no seu melhor
Se o bom livro é aquele que se abre com interesse e se fecha com proveito, como terá dito algures o famoso pedagogo norte-americano Amos Bronson Alcott, então o diário que acabo de ler do embaixador e escritor Marcello Duarte Mathias, é mesmo um bom livro.
Primeiro, porque abria-o sempre com o desejo de ler, continuamente, sem parar, e segundo porque quando o fechava, tinha sempre, mas mesmo sempre, aprendido ou reaprendido algo. Este é um diário extremamente bem escrito. Um conjunto de ideias, passagens e entradas empolgantes, eruditas, bem informadas, pertinentes e numa escrita elegante, escorreita, direta e simultaneamente rica. O Diário da Abuxarda (2007-2014) é uma obra para se ler e reler, porque tal como escreveu Voltaire: a leitura engradece a alma.
Há anos que sou um leitor de diários. Gostei, muito mesmo dos diários de Miguel Torga, de Vergílio Ferreira, de José Saramago (estes por vezes com algum azedume), do açoriano Fernando Aires e de vários escritores americanos e latino-americanos. Os diários, por serem uma escrita intima, são para mim uma leitura necessária, porque neles descubro, não só os autores, mas descubro sempre algo sobre a minha própria identidade. Aliás, o próprio autor do Diário de Abuxarda, utilizando uma citação de Doris Lessing, do belo livro The Golden Notebook, reflete essa ideia: escrevendo sobre nós próprios, escreve-se sobre os outros. Daí que quando pela internet (através duma entrada no facebook do meu amigo, Miguel Vaz) soube da publicação deste diário, fui, graças às novas tecnologias, adquiri-lo, por via eletrónica. E apesar de ainda ter uma certa carga de romantismo e gostar do livro tradicional, em papel, já há muito que me rendi aos livros eletrónicos, particularmente em português. Até porque, muitas vezes, é a única forma de os conseguir. Para não falar no problema que tenho cá em casa no que concerne a espaço para livros. Comprei-o numa quinta-feira, ainda em tempo de aulas e quase no fim do ano letivo. Cinco dias mais tarde já o tinha devorado, e com mais de cem anotações e centenas de sublinhados.
Desde sempre que ouço, e não sei a quem se deve, esta frase: Não escolhemos os livros, são os livros que nos escolhem. Apesar do lirismo da frase, por vezes, é mesmo assim. É que precisava, muito mesmo, de ler um diário destes. Ao longo das 351 páginas dei-me a entender com algumas das crónicas que havia escrito e alguns comentários feitos aqui e ali sobre as comunidades, Portugal, União Europeia, a guerra do Iraque e o puritanismo americano. Para não falar nos inúmeros sublinhados sobre o nosso quotidiano, independentemente onde vivamos e quem sejamos. Como no pós-modernismo acabamos todos (pelo menos no mundo ocidental) por sermos muito iguais. Vejam esta citação, que é longa, bem sei, mas vale a pena ler e refletir:
Acordam de manhã cedo, e saem logo para o emprego.
No trabalho, são atentos e esforçados. A hora do almoço é quase sempre partilhada com colegas do escritório; à noite, jantam fora com amigos, ou deixam-se ficar em casa a descansar. O telejornal dispensa-os de gastar dinheiro na compra de jornais. Em boa verdade para quê, se as notícias são as mesmas?
Ao fim de semana, andam entretidos a passear com a família pelos centros comerciais. Os mais afortunados fazem desporto, jogam golfe ou ténis, e, no Verão, praticam vela. A maioria, porém, discute futebol, vai ao cinema ou aluga vídeos.
Apesar de uma grande diferença em termos de hábitos e de estatuto social, apresentam um ponto em comum: tanto os mais velhos como os mais novos, os que dispõem de dinheiro e os que não o têm, os que estão na política e fora dela, os que vivem na cidade ou residem na província, os que passam férias no estrangeiro e os outros, todos têm, repito, um ponto em comum: nunca entraram numa livraria, nunca compraram um livro – nunca leram porra nenhuma sobre coisíssima nenhuma! E assim vão vivendo e envelhecendo.
Pormenor elucidativo: não lhes faz a menor falta.
Quer queiramos, quer não, esta é a realidade da vida de muitos cidadãos neste século XXI, incluindo muitos dos nossos pseudointelectuais. Aliás, até já nem veem televisão, porque o facebook traz todas as notícias, já feitas e pensadas. É mais fácil! Mesmo que não sejam de fontes credíveis. E mesmo no facebook, a maioria opta por leitura breve, de duas frases, feitas há séculos e de uma linearidade assustadora. E andamos, por aí, assim, todos satisfeitos e cheios de presunção porque sabemos repetir duas ou três frases feitas, com ideias mais do que recicladas. Fazemos festas, vamos aos cocktails, falámos da classe política, sem a conhecer, dos males do mundo, sem os pensarmos, e repetimos a dose, todos os dias, todas as semanas, todos os anos. Porque o resto, infelizmente, como nos diz o autor: não faz a menor falta.
Através dos últimos anos, e embora à distância, sem querer meter a “foice em seara alheia”, sempre com muito cuidado e depois de leituras em jornais e alguns livros de especialistas, tenho comentado, aqui e ali, a situação na Europa e toda a ambiguidade da mesma, particularmente durante a última meia-dúzia de anos. Sempre tive receio de uma Europa tecnocrata e daí que os vários sublinhados que tenho do livro do embaixador Marcello Duarte Mathias, profundo conhecedor do “velho continente”, quer pela sua experiencia diplomata quer pelas suas leituras e reflexões, são verdadeiros tesouros. As suas reflexões não estão pintadas com as cores partidárias que tantas vezes sujam a nossa vista. Os seus pensamentos, colocados ao longo dos sete anos que o Diário de Abuxarda contém, são preciosos, para se compreender a Europa de hoje, e Portugal no contexto europeu. Vejamos:
A ideia europeia está hoje dividida entre teólogos e tecnocratas, ambos responsáveis por teorias inoperantes. Por volta de 1980, referindo-se à Europa, Ionesco dizia: «a cultura une os homens, a política separa-os». Receio bem que se Bruxelas teimar em unir os homens contra sua vontade, estes encontrarão nas respectivas culturas nacionais os seus únicos espaços de liberdade. A cultura como refúgio e não como ponte. O contrário do que deveria ser. A Europa: comboio que descarrilou algures, e já não chegará a tempo. A que horas era suposto chegar?
Ao longo do livro, repleto de notas de rodapé no fim de cada capítulo, ou seja cada ano, com uma amálgama de referências bibliográficas, que são riquíssimas sugestões de leitura, há observações sobre a literatura, o cinema, a história, as artes plásticas, a religião, a família, a política, a diplomacia e acima de tudo um conjunto de pensamentos e ponderações sobre Portugal. É mais do que óbvio que o autor é um apaixonado pelo seu/nosso país , e como tal, sofre, como se sofre sempre quando se ama.
O Diário de Abuxarda (pequena localidade junto de Cascais onde vive o autor com a sua mulher) é uma leitura cativante. Abre-nos novos horizontes. Transporta-nos ao mundo cultural português, europeu, universal dos últimos sete anos. Traz-nos ainda, sem pretensiosismos, ou soberbas uma grande dose de sabedoria, de pensamento profundo. É que escrevendo (e lendo) sobre os outros também se descobre quem se é. O autor magistralmente dá-nos esse exemplo: “Ajustar a nossa personalidade ao que somos, àquilo que realmente somos. Eliminar o supérfluo das pequenas vaidades que, nos outros, tanto nos irrita. Sim, à maneira do carpinteiro que trabalha a madeira e a vai aplainando e polindo, dia após dia, até à configuração definitiva do desenho final. Em suma, chegar ao fim sabendo-se quem se é.”
É uma leitura absolutamente sedutora. Um livro que me marcou e que certamente marcará todos os leitores. Um livro que fica já na lista para uma obrigatória segunda leitura.
Nota sobre Diniz Borges: Natural da Ilha Terceira,Açores.Vive em Tulare,Califórnia. É professor,escritor e crítico literário. Assina a página literária do Jornal Tribuna Portuguesa (Modesto,Ca). Líder atuante da comunidade portuguesa na América do Norte e de lá se faz ouvir e muito bem.