Um olhar sobre a mesa de trabalho de Vitorino Nemésio
Luiz Fagundes Duarte
(Universidade Nova de Lisboa)
O tema do OUTONO VIVO deste ano – Açorianidade – Percursos à volta de casa – sugeriu-me de imediato uma associação entre o conceito de “casa” e o conhecimento que trinta anos de experiência sobre a mesa de trabalho dos escritores me deram sobre a maneira como eles produzem as suas obras. E uma visita à casa de alguns escritores que, por alguma razão, têm sido presença activa na minha própria mesa de trabalho.
Começo por Michel de Montaigne e pela famosa torre do castelo onde ele vivia e escrevia, e onde deixou escritas, nas paredes da biblioteca, cinquenta e sete frases retiradas da Bíblia e de alguns autores clássicos, que nos permitem reconstituir o ambiente ideológico geral em que ele escreveu os seus Ensaios. Uma dessas frases era de Sextus Empiricus, médico e filósofo grego (séc. ii-iii) que rezava assim: ‘Endecetai kai ouk endecetai, ou seja, “isto pode ser e pode não ser”. Estávamos por volta de 1580, e Montaigne assim apresentou ao leitor o seu livro:
(Imagem 1)
Eis aqui um livro de boa-fé, leitor. […] Quero que através dele me vejam na minha feição simples, natural e vulgar, sem contenção ou artifício: porque é a mim que eu pinto. Os meus defeitos aqui se hão-de ler ao vivo, e também a minha forma singela, na medida em que mo permitiu a reverência pública. Tivesse eu estado entre aquelas nações que se diz viverem ainda sob a doce liberdade das primeiras leis da natureza, e asseguro-te que de bom grado eu me teria feito pintar de corpo inteiro, e inteiramente nu. Deste modo, leitor, eu próprio sou a matéria do meu livro.[1]
Passo depois para um outro homem fatal da minha vida – Eça de Queiroz -, que, através da personagem Gonçalo Mendes Ramires, e pelos anos ’90 do século XIX, nos descreve as angústias de um escritor à mesa de trabalho:
(Imagem 2)
Quando nessa tarde se acomodou à banca, para contar a sala de armas do Paço de Santa Ireneia por uma noite de lua – só conseguiu converter servilmente numa prosa aguada os versos lisos do tio Duarte, sem relevo que os modernizasse, desse majestade senhorial ou beleza saudosa àqueles maciços muros onde o luar, deslizando através das rexas, salpicava centelhas pelas pontas das lanças altas, e pela cimeira dos morriões… E desde as quatro horas, no calor e silêncio de domingo de Junho, labutava, empurrando a pena como lento arado em chão pedregoso, riscando logo rancorosamente a linha que sentia deselegante e mole, ora num rebuliço, a sacudir e reenfiar sob a mesa os chinelos de marroquim, ora imóvel e abandonado à esterilidade que o travava, com os olhos esquecidos na Torre, na sua dificílima Torre, negra entre os limoeiros e o azul, toda envolta no piar e esvoaçar das andorinhas. [2]
Montaigne e Eça sabiam do que falavam – tal como o sabia outro escritor de minha eleição, o americano Edgar Allan Poe, que, na sequência do êxito retumbante do seu poema The Raven (O Corvo, 1845), decidiu explicar aos seus leitores como é que compusera o seu magnífico poema (de que existe uma tradução para português feita por Fernando Pessoa, outro dos grandes escritores com quem tenho tido a felicidade de conviver); a dada altura, escreveu Poe:
(Imagem 3)
Já muitas vezes pensei no interesse do texto de um autor que quisesse, melhor dizendo pudesse, contar passo a passo o caminho que trilhou até alcançar o seu objectivo. Porque um trabalho desses nunca apareceu a público, é‑me difícil explicá‑lo; mas uma falta destas talvez tenha muito mais a ver com vaidade de autores do que outra coisa. Há muitos, principalmente poetas, que gostam de fazer‑se imaginar entregues a uma espécie de subtil frenesi ou intuição extática, e haviam de arrepiar‑se por autorizar o público a dar um espreitadela aos seus bastidores, a contemplar de perto os laboriosos e indecisos embriões do seu pensamento, a decisão tomada no último instante, a ideia vezes sem conta vislumbrada como que em relâmpago mas recusando‑se, às vezes tanto tempo, a surgir em plena luz, o pensamento já completamente maduro e assim mesmo rejeitado em desespero por ser de intratável natureza, a escolha prudente e as escórias, as dolorosas emendas e as interpolações.
Mas, afinal, o que é a casa para um escritor? A torre do seu castelo, como o era para Montaigne ou Gonçalo Mendes Ramires? Ou a sua concha, como nos diz o nosso anfitrião de hoje, Vitorino Nemésio?
(Imagem 4)
A CONCHA
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.
A minha casa… Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.[3]
Mas, afinal, o que é que podemos encontrar no interior da casa de um escritor? Bem… Muita coisa, naturalmente. Mas, certamente, encontraremos isto:
(Imagem 5)
O leitor não costuma ter acesso aos papéis dos escritores – e também não costuma dar por isso. É como se a história de um livro começasse no escaparate da livraria ou no catálogo da biblioteca, tendo por trás uma entidade vaga a que se chama autor: um Nemésio, um Régio, um Miguéis; um Pessoa, um Eça, um Camilo; um Vieira, um Francisco Manuel, um Bernardes; um Gil Vicente, um Camões, um Sá de Miranda. Gente que escreveu textos que nós lemos – impressos. Como se fora coisas de um deus ex machina.
Mas cada texto literário tem sempre uma história que antecede o livro e a que chamamos génese: a história do nascimento e do tornar-se texto de uma obra, desde a sua forma mais primitiva – uma ideia vadia, um esboço, um borrão -, até à sua forma acabada – o original de circulação ou de tipografia, a prova tipográfica corrigida, o livro saído sob as vistas do autor -, passando por uma ou mais formas intermédias – onde o autor vai trabalhando o texto, campanha a campanha no mesmo manuscrito, copiando-o de um manuscrito para um outro manuscrito, e assim sucessivamente, até encontrar – ou não – a forma pretendida.
É um trabalho de oficina: a matéria-prima é a língua, o artífice é o autor, a obra é o texto. A memória de tudo isso fica, por vezes, nos tais papéis – os testemunhos – a que o leitor não costuma ter acesso.
(Imagens 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12)
Imagem final
Enquanto filólogo que se ocupa prioritariamente de manuscritos autógrafos, eu encaro este tipo de manuscritos, na sua materialidade pura, como nada mais do que a parte visível do campo onde se desenrola a batalha, ou do tabuleiro onde se faz o jogo, contra as palavras, a gramática, as regras, os gostos, os hábitos, as expectativas – que o escritor travou enquanto construía o seu texto.
Na minha qualidade filólogo, eu não posso fazer outra coisa que não seja decifrar e interpretar todos os traços deixados pelo autor no conjunto dos manuscritos do texto com que trabalho e de que, eventualmente, retiro uma edição crítica: as conclusões, as certezas, e sobretudo as dúvidas com que me deparo permitir-me-ão que diga ao leitor que o texto que eu lhe dou a ler teria podido ser como este que eu lhe ofereço na edição que preparei, mas poderia ter sido diferente se o autor tivesse decidido seguir uma das hipóteses por ele consideradas, postas em dúvida ou abandonadas ao longo do processo de génese textual – e o texto crítico poderia ser ainda diferente se fosse outro que não eu a editá-lo.
Como resistir, afinal, ao que se passa dentro da casa de um escritor, à volta da sua mesa de trabalho, dentro dos papéis que manuseia? Como resistir, afinal, ao encanto que é encontrar, decifrar, entender, organizar, transcrever e editar os papéis de um escritor como Vitorino Nemésio, o dono da casa para a qual todos nós, hoje, fomos convidados? Bem, a verdade é que só dificilmente resistiremos, e foi a isso que eu vos convidei, hoje.
Muito obrigado!
Luiz Fagundes Duarte
[1] Montaigne, ed. 1992: 3.
[2] É assim que vem dito por Eça de Queiroz, já na parte final do primeiro capítulo d’A Ilustre Casa de Ramires.
[3] Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso (1938)