Um pouco mais de azul
Alice também começa a despertar. É mais uma das últimas a sair da cama, mostrando sempre a sua revolta pelas regras do Lar que impõem hora para tomar o pequeno-almoço.
Ao iluminar-lhe a mesa-de-cabeceira, a luz doura-lhe as fotografias onde ecoam as memórias de África: primeiro, a Angola, Moçambique e depois a Guiné, antes a Holanda… mais tarde, ainda, Macau, a China, Timor-Leste e, finalmente, o Uruguai. Uma autêntica mulher do mundo. Apesar dos setenta e oito anos cumpridos, ainda sentia em si o desejo de viajar, o que fazia sempre durante o mês de Maio, sobretudo para destinos próximos, como Madrid. A sua saúde mantinha-se estável. Contudo, um pequeno problema cardíaco, levou-a a optar por aquela casa, onde passava a maior parte do ano – tinha comodidade e não precisava de se preocupar com o facto de viver sozinha, nem com qualquer tipo de tarefas domésticas. Aliás, mantinha ainda o seu atelier, no pequeno apartamento onde vivera nos últimos anos e ao qual se deslocava com frequência, para concluir alguns trabalhos. Fora, inclusive, contactada por uma Galeria, para realizar uma grande exposição retrospectiva, onde exporia os seus trabalhos considerados mais importantes. Contudo, sentia que o peso da idade lhe começava a tolher alguns gestos e o pincel não lhe obedecia como outrora. Por isso, preferia exibir alguns quadros mais antigos, pois receava dar uma imagem de degradação a contrastar com a perfeição que perseguira a vida inteira. Sabia que era lamentável o facto de os artistas não terem noção do final, de antecipar o eco da degradação antes de ele se tornar voz. E era ver, às vezes, os actores, os cantores, os pintores com desempenhos de fazer pena, a mostrarem obras de principiantes, dignas de lamento em lugar da admiração que anteriormente haviam conquistado no público. Porém, a pintura fazia parte dela, sempre fizera, corria-lhe no sangue, palpitava-lhe em cada via, mesmo que o pincel lhe desobedecesse ou que a mão não lhe acompanhasse a agilidade do cérebro. Pintar era, em suma, viver e, no dia em que o deixasse de fazer, seria sepultada em sete palmos de terra e ponto final. Desde os seis anos que o desenho e a pintura eram um modo de ser. No entanto, as dificuldades económicas da família não lhe permitiram estudar Belas-Artes, sendo por isso, uma auto-didacta.
Assim, a única forma de manter viva a sua alma era continuar a pintar, quase em segredo, para si própria e para a sua velha gata Indy, com quem passava quase todos os dias no atelier, regressando ao Lar quando a noite começava a cair.
Indy observava atentamente cada um dos seus traços semeados sobre a tela branca, acabada de fazer. Depois, quando ela perguntava: “O que te parece, amiga?”, lambia-lhe as mãos com a língua áspera e carinhosa, com ar de aprovação. E bastava-lhe isso para ter a certeza de que podia continuar, para não desistir, mesmo que a artrose, às vezes lhe ameaçasse os pulsos. Enquanto aquela sua fiel companheira vivesse, pintaria para ela. Sempre fora solteira, sem família, inteiramente livre e isso havia-lhe dado o privilégio – que a maioria das pessoas não tinha de escolher o Lar onde passaria os últimos anos da sua vida. Não precisava de obedecer às vontades interesseiras dos descendentes, camufladas de “amor filial”. Por isso, podia sair quando lhe apetecesse, voltar, viajar, pintar, existir, enquanto as forças lhe permitissem.
Fora uma mulher bonita, sensual e muitos homens, de várias cores, raças, credos e etnias, haviam habitado o seu corpo e o seu coração. Deixaram-lhe na pele carícias, cheiros, farrapos de desejos e de promessas desfeitas na espuma dos dias. Mas nenhum a prendera. “Não se pode prender o que flui como um rio” – disse um dia alguém. E essa era a sua principal característica: fluir, correr, viajar, evoluir, passar, como a paleta de cores sobre as telas, deixando marcas indeléveis naqueles que haviam cruzado os seus caminhos.
Por vezes, a paixão nascia da mera atracção física. Amava imediatamente o belo. Atraíam-na os corpos esculturais, os Apolos, os Adónis e nunca lhe fora difícil seduzi- -los. Tinha uma predilecção por morenos, mas também não desdenhava um loiro angelical. Aliás, o seu conceito de beleza não se cingia a um tipo restrito, gostava igualmente da miscigenação, das misturas de raças que produziam seres humanos tão interessantes e únicos. Apesar disso, não era, nem nunca fora leviana, nem sequer mundana, mas nunca adiara, nem reprimira uma paixão. Vivera-as todas intensamente. Várias vezes fora traída, mas nem por isso se fechara. A sua mente era aberta, livre e disponível, os seus horizontes tinham a dimensão de todos os caminhos do mundo que trilhara, de todas as pedras que lhe haviam ferido os pés, de todos os mares onde se havia banhado.
Na parede, em frente ao leito, o seu último quadro desnudava ainda as cores quentes de África. Aquela terra vermelha tão amada onde vivera durante vários anos: uma tabanka, uma mulher dobrada, preparando a mandioca, talvez, ou qualquer outra coisa que sirva de sustento. Os telhados de palha de arroz ressequida e acinzentada ondulando ao vento. O quadro era emoldurado por um céu esbatido de cor acinzentada, quase londrino.
Alice conheceu muitas mulheres como aquela quando percorreu os milhentos caminhos poeirentos de Moçambique, da Angola, da Guiné-Bissau, as ilhas magníficas do arquipélago das Bijagós. Na sua maioria eram mulheres muito sofridas, vergadas pelo trabalho, pelos sacrifícios. Eram a trave-mestra da família, a pedra angular: pariam, labutavam, alimentavam, acarinhavam, amavam. E quantas vezes, em troca, eram desrespeitadas, humilhadas, agredidas, espancadas… A verdade é que, naquelas pequenas comunidades rurais, elas podiam ser a chave para um mundo melhor. Se os apoios da ONG fossem concedidos aos homens, imediatamente os gastariam em vinho de palma ou em aguardente de caju. Em contrapartida, as mulheres tinham o dom de multiplicar as bênçãos que iam recebendo, fazendo-as frutificar.
As águas cristalinas que banhavam a ilha de Rubane, um território quase mítico que a visitava em sonhos; o riso claro das crianças que lhe estendiam bagas de veludo e lhe pediam esferográficas bic, rebuçados e caramelos – pequenos tesouros que ela tinha sempre o cuidado de levar para lhes oferecer. Para esses meninos de ébano, aquelas insignificantes oferendas eram motivo de grande e profunda alegria.
Por vezes, as suas noites também eram visitadas pelo voo planado dos grifos da Guiné. Via-lhes os pescoços desnudados, o apetite voraz, a antecipação de uma morte ansiada. Eram uma espécie de flagelados do vento leste, sempre a pairar por todo o lado, impondo o seu olhar observador e silencioso. Alice comparava-os a certas pessoas ao serviço das ditaduras que se limitavam a perscrutar os mínimos gestos, sorrateiramente, para depois denunciar, trair, delatar.
Licenciara-se em Sociologia em Utreque. Depois, iniciara a sua saga pelos mais diversos e recônditos cantos do mundo, ao serviço de uma ONG, a realizar trabalhos de investigação ou exposições de pintura.
O seu último destino, no estrangeiro, havia sido Montevideu. Vivera lá dois anos e apanhara um período complicado da história, marcado pelo célebre “corralito” argentino, que havia determinado o congelamento dos depósitos bancários, em 2001 e 2002.
Assistira a um súbito declínio do país, que, ironicamente, lhe dera alguns elementos interessantes para o estudo que realizava na altura.
Recordava sempre com saudade a cor barrenta do Rio da Prata, as Ramblas cheias de gente tomando mate (hábito exclusivamente uruguaio esse de se “matear” pelas ruas). As inúmeras salas de cinema e teatros, os jantares com os amigos que por lá “reconhecera” (acreditava, à semelhança do que dizia Vinicius de Morais, que o
s amigos não se fazem, reconhecem-se). Por lá, conhecera ainda o escritor Eduardo Galeano, autor, entre outras obras de La Venas Abiertas de América del Sur, Mário Benedetti e Idea Vilariño, a “diva” da célebre geração de 45, cuja paixão pelo grande escritor Juan Carlos Onetti se havia convertido em mito literário. E, da mesma forma, conheceu-lhes as obras, saboreou-lhes as palavras naquele castelhano adocicado que se esforçou por rapidamente aprender. Além disso, leu ainda a obra de Felisberto Hernandez, do trágico e fantástico Horácio Quiroga, a tristeza profunda e a nostalgia da Santa Maria, cidade ficcional, intermédio entre Buenos Aires e Montevideu, concebida por Onetti. Apesar de ser pintora tinha um profundo interesse pela Literatura e por todas as artes em geral, que acreditava que se mesclavam, numa harmonia surpreendente e inusitada. Mas também os pintores daquele recôndito país da América do Sul: Juan Manuel Blanes, Joaquin-Torres Garcia, Pedro Garcia, entre outros.
Outras vezes, voltava a sentir os cheiros agridoces de Macau, a última colónia portuguesa, que na altura ainda era uma espécie de um recanto longínquo e indefinido de Portugal. As cores da dança do dragão, perante as ruínas da imponente catedral de S. Paulo: a ponte entre oriente e ocidente, entre religiões e credos, entre mundos e culturas, cais de encontros e desencontros, abençoados ou amaldiçoados pelo Delta do Rio das Pérolas.
Depois, cruzavam-se as Portas do Cerco da “Cidade do Santo Nome de Deus (Não há outra mais Leal”) e estava-se em Cantão, um mundo “Outro”. Aí, o verde dos arrozais, o azul dos lagos, o castanho dos pequenos bois que puxavam o arado… Eram para ela, essas as cores da China: verde, castanho, o cinzento da neblina e um azul suave, feito da mais fina porcelana, aquele azul…
Voltou a contemplar o quadro que Indy não havia aprovado. Olhara-o com um felínico ar de desprezo, lambera as patas e fora deitar-se no seu cesto, indiferente. Para ela, não havia maior crítica de arte do que aquela velha e sábia gata, com olhar de deusa egípcia. Por isso, levara o quadro para o Lar, para o analisar, para meditar acerca dos erros nele cometidos. Levara-o bem embrulhado para que ninguém o visse. Já expusera muita coisa ao mundo inteiro, mas era demasiado orgulhosa para mostrar a qualquer ser humano uma obra considerada imperfeita ou incompleta.
A mulher lá continuava, debruçada no jugo do seu trabalho – a sociedade guineense, como muitas outras, era matriarcal. As mulheres trabalhavam, sustentavam os filhos, o lar, enquanto os homens caçavam, pescavam, conversavam ou se embebedavam. A tabanka também lá estava erguida na sua genuína humildade, a terra vermelha e fértil… então, o que faltava?? Ah, de repente, a sua alma iluminou-se: o céu !! Era isso mesmo!! O céu tinha um tom acinzentado, precisava de azul, a mais profunda e imaterial das cores, conducente ao caminho do devaneio, do sonho. Como diria Mário de Sá-Carneiro, num poema: “um pouco mais de azul – e fora além.”
Dora Nunes Gago in A Oeste do Paraíso , ed. Emooby, 2012 (adaptado)