Justificação desnecessária
A introdução a este volume é completamente desnecessária. O leitor que se queira aventurar por estes textos dentro reconhecerá que a figura em polifonia celebrada neste livro emerge aos poucos de cada viragem de página. Supérfluo se torna por isso tudo o mais. O autor destas linhas, membro do par coordenador deste festschrift, já esboçou um longo registo biobibliográfico do seu tema – a pessoa de Eduíno de Jesus – no posfácio do volume dele, Eduíno, Os Signos do Silêncio , colectânea de poesia (de modo nenhum a obra completa) do aqui homenageado poeta, crítico e erudito altamente estimado por este vasto e diversificado leque de amigos e admiradores. O leitor que se quiser inteirar de dados e datas sobre o nosso ele deverá recorrer a esse livro e, no processo, verá que muito bem isso lhe vai fazer, auferindo-lhe proveitos diversos, dos quais o estético não será por certo o menor.
Eduíno de Jesus é uma espécie de mascote para várias gerações açorianas que ele, coevo polícrono, acompanhou e que sempre o olharam com estima e veneração. Concita unanimidades em diversíssimas áreas, mormente a da sabedoria, que todos admiram e de que gostam de usufruir ouvindo-o e interrongando-o sobre uma miríade de temas que vão da literatura à arte, da literatura açoriana à história insular, da filologia à teoria da literatura, ou do teatro à etimologia.
Todos nós temos pena de o nosso amigo Eduíno há décadas insistir em esconder os seus conhecimentos debaixo de uma rasoira (a imagem é bíblica) porque, em tempos irreconhecíveis, e depois de uma intensíssima actividade publicista nas décadas de cinquenta e sessenta na ribalta nacional, foi atacado de um abstruso mal que amigos próximos garantem persegui-lo desde a infância: o perfeccionismo. Como exemplo, aí estarão os excertos de e-mails que em forma de diário vêm neste volume incluídos, por decisão dos coordenadores. Porque Eduíno de Jesus, graças (ou des-graças) a essa malfadada psicose de perfeição se recusa a publicar seja o que for – não fosse a extrema teimosia e persistência da sua amiga Ana Maria de Almeida Martins os Signos do Silêncio, teriam ficado em perpétuo silêncio no sepulcro do seu computador), ousámos sem seu consentimento – ou sequer conhecimento – socorrer-nos do que de mais próximo se assemelhava a um diário. Deste modo, na ausência desse diário intencionado que nos narrasse o dia a dia de um cérebro pensante e esteta do verbo, apoderámo-nos dos e-mails que a um de nós ele amiúde envia, não sem reluntância por se dizer já sem pachorra para certas coisas da vida e sobretudo das letras e artes. Desses e-mails foram eliminadas todas as passagens que ao destinatário diziam respeito, bem como qualquer referência a terceiros possivelmente melindrosa. Nanja que o Eduíno se compraza nesse tipo de actividade, por mais clássica que ela seja na cultura lusitana. Raramente o faz e, quando isso acontece, ela emerge na mais subtil e elegante das formas, como quando um dia, ao aludir a uma pintora de quadros naïf, dela disse tratar-se de “uma pintora naïf naïf”. Tudo dito, c’est tout.
Atrás falou-se de psicose de perfeccionismo. Sirva de simplicíssimo exemplo este que há poucos dias chegou narrando o resultado de intensos dias de trabalho a melhorar um breve texto sobre Antero, quando a redacção de uma revista por ele esperava agonizante a fim de fazer seguir o número para a tipografia. Passados dias de intenso e aturado esforço, Eduíno de Jesus emergiu do silêncio dando conta do seu aturado esforço nos seguintes termos:
O texto sobre as Odes Modernas, ainda não foi desta. A principal melhoria que lhe introduzi foi no título. Chamava-se As Odes Modernas, “Poesia de Combate”, como ele mesmo, Antero, as classificou na carta a W. Storck, acrescentando: “como dizem os franceses”. Mas o meu artigo é a dizer que o combate que Antero travava não era tanto pelo que mais explicitamente dizia a suas Odes, mas por uma reforma moral das sociedades, etc., coisa que está nas Odes, mas menos visivelmente do que a vassourada que ele dá nos poderes estabelecidos na política, na religião e por aí fora. Bem, então que mudança fiz eu agora no título do meu artigo? Introduzi-lhe um “Que” e um ponto de interrogação. Ficou assim : As Odes Modernas, “Poesia de [que] Combate?”. Não achas que foi uma boa ideia?
Já não há, na nova gerações de gentes do reino português das letras, perfeccionistas deste calibre, googles de quejanda estirpe, poços sem fundo de conhecimentos que nunca se atreviam a vir a público abrir a boca sobre nada sem ser penteada a frase penteada, o cachecol coordenar-se com a cor do verbo e as luvas assentarem justas sobre os adjectivos e advérbios.
Tudo isso sempre na finura do trato (quem ainda beija a mão a uma senhora?), na elegância da amizade e no riso franco de uma camaradagem que ele apoda de ‘literária”, mas que é, no fundo, profundamente humana, no melhor de que o género é capaz.
É por estas e por outras que este magote de devotos aqui vem dar um afectuoso abraço de amizade ao octagenário que tão bem sabe ser da geração de qualquer de nós.
Nota: Imagens gentilmente cedidas por Eduardo Resendes,fotógrafo do Jornal Açoriano Oriental