Um punhado de areia nas mãos
Era uma vez uma filha… Normalmente o prefácio de um livro não
tem título. Onésimo Teotónio Almeida deu, porém, título ao prefácio
deste Um punhado de Areia nas Mãos. E não precisava escrever
mais nada… Era uma vez uma filha é o melhor que se pode dizer de
Maria João Ruivo, a autora do livro, filha de Fernando Aires – Era
uma vez o Tempo – "que me passou, de todas as formas, a paixão
pela escrita"… E o Onésimo justifica: Não é impunemente que se é
filha de um escritor que marcou as letras portuguesas com um
diário – Era uma vez o Tempo – de uma singularidade exemplar no
género. Como pode uma filha que adorava o pai, e se delicia a
evocar as memórias dele (…) escapar a este peso, por mais doce que
lhe seja? (…) Por todas estas e outras razões, natural será que
Fernando Aires esteja presente página sim, página não, entrando e
saindo dos parágrafos com a naturalidade da mudança do tempo
nos Açores, isto é, a toda a hora e sem causar surpresa.
Um punhado de Areia nas Mãos, com edição de Letras LAVAdas, é o
primeiro livro de Maria João Ruivo, é "um livro intimista que reúne
memórias e reflexões que abrangem um longo período de tempo,
embora, como a própria autora diz, com largas intermitências,
porque a escrita de nós não é pacífica e, a par com o encantamento
da descoberta, traz muitas dúvidas e angústias, por isso a adiamos
tantas vezes".
A professora Maria João Ruivo, como acima referi, é filha do grande
escritor Fernando Aires e, embora este seja o seu primeiro livro,
longa já vai a sua experiência de ligação à escrita, com publicações
na imprensa e com a coordenação e co-autoria de outras obras,
nomeadamente o livro Memórias do nosso Liceu, e o grande
projecto que foi reunir num volume o Era uma Vez o Tempo, em
trabalho conjunto com Onésimo Almeida e com Leonor Simas
Almeida.
há um pássaro que se liberta do ninho e trilha caminhos próprios em
voos para o desconhecido. Jovem que é Maria João Ruivo, (nasceu
logo ali, em 1965) consegue brindar-nos com memórias que são
verdadeiros pensamentos, numa linguagem muito própria, muito
feminina, mas cheia de vigor criativo que, bastas vezes, nos faz
parar, reler e anotar… Lembro-me daquele pedaço deslumbrante de
prosa, onde perante sensação da grandeza territorial, Santa Maria é
"uma ilha de brincar"… E também me fixei naquela pontinha de
filosofia, quando Maria João Ruivo escreve: Durante alguns anos, a
vida pareceu-me tão certa e tudo deu ideia de estar no seu devido
lugar. Sonhei o futuro como se a vida fosse eterna"…
Sempre me fascinou seguir o ritmo da vida, nas estações, nas festas,
nas celebrações e nas emoções familiares. As entradas que Maria
João Ruivo vai fazendo, ao longo das mais de 170 páginas do livro,
levam-me por esses caminhos de tempo e lugar, Natais saudosos,
Santos e Carnaval, Primaveras e Outonos (a estação preferida de
Fernando Aires que nele morreu), flores, filhos e pássaros, tudo isto
é vida palpitante que escorre deste diário, onde não faltam também
os alunos, a irreverência e o outro lado de ser professor(a).
Não me posso esquecer daquela comovente narração do encontro da
autora com o seu Pai, nos papéis existentes no Liceu – Escola
Secundária Antero de Quental… Mesmo com fotografia, "parecia
outra pessoa", nos dados, nas fichas, nos papéis… Tão diferente
daquilo que tinha no coração… "A vida é estranha, de facto. Naquele
registo biográfico oficial não encontro o ser de meu Pai. Como direi
isto? Aqueles documentos oficiais sobre o percurso profissional
dele, não fosse a sua assinatura, poderiam ser de outro indivíduo
qualquer. É isso. Ali pouco se encontra da sua essência. Do amor
dele peãs pessoas e pelas coisas. (…) Mesmo assim fiquei com um
nó na garganta!
que são só nossas estão povoadas de coisas que ouvimos aos outros,
de dizeres de família, que passam de forma quase imperceptível,
como as moléculas de ADN"… E ao ler as recordações que a autora
acorda, encostada ao avô "tão pequenina que a minha cabeça lhe
dava pelos joelhos", também eu me senti ao colo dos meus que hoje
recordo, porque como dizia Fernando Aires , "as pessoas não
morrem enquanto os que as amaram se lembrarem delas"…
Como também vivi a experiência da guerra colonial, tocou-me a
forma psicologicamente certeira como a Maria João fala do João
Pataco que "vive de pão e vinho" e de seu só tem um saco, a muleta
e toda uma vida para contar… A mulata a lembrar-lhe o seu cajado
de cabreiro: "estive em Moçambique, na guerra do Ultramar"…
Uma foto que parecia ferida de feia intromissão em vida sofrida,
poderia ser uma forma de eternizar o Pataco numa sala do Centro
Cultural… uma homenagem, uma forma de dignificar este homem…
E se me refiro ao João Pataco, uma entrada no livro que já vem de
2008, não esqueço aquela de 2010, um banco, um mendigo e um
cão. É tão comum, que só reparei, porque, ao darem-lhe um bocado
de bolo, o homem partiu-o exactamente ao meio e partilhou-o com
o seu fiel companheiro. Fiquei com lágrimas nos olhos. Não tanto
por essa partilha, que não deixa de ser comovente, mas porque ela
é a prova da tremenda solidão que faz com que um homem fique
com fome, pelas simples razão de que a sua companhia é tão
importante como o pão para a boca.
Detenho-me, aqui nestas Leituras do Atlântico, nestes casos que
muito me tocaram, para referir que este Um Punhado de Areia nas
Mãos, embora sendo um diário intimista, como diz a autora, está
cheio de motivos que nos fazem interiorizar sentimentos e vivências
que só alguém com apurado sentido de oportunidade e humana
sensibilidade capta.
Maria João Ruivo tem uma escrita madura, bonita, leve e cativante,
mesmo quando se sente menina insegura: "Pai, agora o nosso
nunca me deixarias cair"… E, para a mãe, esta dedicatória, sobre a
paixão pela escrita que me obrigou a mantê-la, quando me sentia
insegura.
Para quem gosta do género literário diarista, um livro a não perder!
Santos Narciso