Nas minhas andanças conheci muitos tipos de silos. No entanto, ainda não conhecera um silo que armazenasse poemas, alimento para a alma. Sim, este silo existe. Tem nome e criador. Falo da obra poética Os Silos do Silêncio que reúne as mais representativas poesias de Eduíno de Jesus, no período de 1948 a 2004.
Mais de meio século de trabalho poético e aventuras por muitos caminhos em recolhas tão diferentes que poderia se dizer de autores diferentes para, finalmente, desaguar numa obra de impressionante luminosidade. Uma antologia pessoal, que reúne na I Parte as três coletâneas poéticas: Caminho para o Desconhecido (1952), O Rei Lua (1955) e A Cidade Destruída durante o Eclipse (1957) e na II Parte Inéditos & Dispersos onde se encontra um conjunto de poesias escritas entre 1948 e 2004.
Eduíno de Jesus é um poeta modernista, afinado com a sua geração, com as tendências que dominavam a poesia portuguesa dos anos cinqüenta. A poesia é o seu território, é o mar profundo em que mergulha numa prospecção íntima, sensível, plena. É neste imenso mar azul que abraça a sua terra insular ou outros mares e terras, por outros mundos e culturas, que navega livre, sem amarras e sem vínculos. Um percurso seu, aberto a todas as correntes como o realismo, o romantismo alemão, o simbolismo francês, o concretismo brasileiro ou o purismo do chileno Pablo Neruda.
No artesanato da palavra, no domínio técnico do verso, no maciço investimento das figuras de linguagem, na reflexão, no lirismo, na emoção e sensações, o poeta extravasa a necessidade da experimentação, visível no desenho da temporalidade de “Os Silos do Silêncio” que abraça um espaço de 56 anos e onde a diversidade e amplitude da polifonia poética atravessa suas páginas.
Entrei em Os Silos do Silêncio de mansinho e deixei me envolver pelo encanto dos poemas e pela sensibilidade do poeta expressa de forma tão vívida. Senti o farfalhar das asas da poesia, na delicadeza do verso de uma sílaba em Anunciação (in:Poética Fragmentária, p.221- 223). Fantasiei e no atalho do tempo fiquei à espera em Metamorfose (in: Caminho para o Desconhecido, p.50-51), de que transcrevo a última estrofe:
Esperei por ti todos os minutos
do dia e da noite com
os nervos a alma ansiosa
afagando-te nas pétalas das rosas
ou mordendo-te na polpa do fruto
Uma profunda ternura emana da sua escrita, na mais pura tradição lírica ou de inspiração no cancioneiro medieval ou, ainda, da influência de elementos do simbolismo revelados num sistema de variação e cadência também encontradas no Cruz e Sousa.
Poesia musical, de ritmos novos e contagiantes, com uso sensual de palavras em metáforas deliciosas cheia de lirismo e de grande beleza estética, como em Como se fosses a Vida (in: Caminho para o Desconhecido,p53) e que diz:
Um dia enfim vieste
branca e nua
com uma
rosa negra no sexo.
E eu pude abraçar
os teus joelhos
e ver-me nos teus olhos
como em dois espelhos
e morder os teus
ombros e dizer
ternuras para
te enriquecer.
Como se a vida
estivesse, em cada beijo e abraço
que te dou, e nas longas carícias que te faço,
resumida.
Há em sua poesia uma verve espirituosa, uma graça provocativa onde o humor e a ironia sutil se esparramam por trilhas do imaginário na criativa escrita, no seu jeito de olhar os mistérios das coisas, de perquirir a alma, os conflitos, a vida.
Há momentos que induzem a aceitação tácita da realidade, de uma aparente indiferença assumida em contraponto ao que acontece lá fora, longe do seu olhar, como em Obsessão (in: A Cidade Destruída durante o Eclipse, p.164-165) e junto com o verso desenrola-se um breve conto ou entra em cena a teatralidade, a peça de um único ato. Mas ele não é, de jeito nenhum, indiferente às sutilezas do tempo, às inquietudes e angústias, às fragilidades humanas. Outros, de um delicioso e sensível humor aliado a um olhar sobre a cidade que o acolheu como Conquista (in:A Cidade Destruída durante o Eclipse,p156-157) que começa confessando:
Eu sou homem de aldeia,
cheguei à cidade de botas amarelas.
Fazem lá ideia
do que os homens da cidade riram de mim e delas!
Pois, apesar disso, a cidade, conquistei-a!
E continua, assim, deliciosamente pícaro como no surreal poema As figuras de cera do Museu das Janelas Verdes (p187) ou com sabor de “piropo”, do lindo Madrigal a uma desconhecida (p.158-159), ou ainda o inquieto Intróito (p.179)que mexe com o finito (ou será infinito?):
Pergunto…
Eis o que faço.
Mas não conto
que respondas.
Tal é o meu embaraço:
Que, no fim das contas,
nada há a esperar
das perguntas
que Te faço.
Não responder é a Tua sabedoria;
perguntar, a minha cegueira.
Cada um entende a mesma luz do dia
à sua maneira.
Todos estão contidos na coletânea A Cidade Destruída durante o Eclipse (1957), carregados de metáforas sedutoras, ternas, caricaturais, provocativas e aliciadoras, que cativam o leitor.
Meu olhar perambula, fascinado com o sortilégio dos olhares tecidos, na urdidura da palavra bordada pela sensibilidade e genialidade do poeta Eduíno de Jesus a falar de imagens guardadas na memória dos sentimentos. Imagens partilhadas por tantas histórias e vivências. Imaginário do poeta, imaginário do leitor.
Aí está neste Silo chamado Eduíno,a homenagem ao amigo, ao sábio, ao poeta que em boa hora abriu as comportas e partilhou a sua singular poesia com toda gente – Os Silos do Silêncio, obra de um mestre! Uma dádiva muito esperada.
Viva! Já não era sem tempo!
Lélia Pereira da Silva Nunes
Florianópolis – Ilha de Santa Catarina, Brasil