(Paul Cézanne 1839 – 1906)
Um sol em agonia a carne gera[1]
Eduardo acende o cachimbo e sentou-se no cadeirão do jardim. Como é madrugador, gosta de apanhar os primeiros raios de sol. Adora ficar ali a contemplar o desabrochar das rosas ou a ouvir o canto dos pássaros, enquanto relê algo de Doistoievski ou a Montanha Mágica de Thomas Mann, A Luz em Agosto de Faulkner…
Fora catedrático de Literatura Inglesa, conhecera o exílio em Londres, tal como Garrett ou Alexandre Herculano. Era, aliás, um autêntico romântico por excelência. Além disso, trabalhara também alguns autores norte-americanos.
Casara em Inglaterra com uma colega inglesa e tivera três filhos. Depois separara-se e voltara a casar com uma mulher vinte anos mais nova. Chamava-se Fátima e um dia havia partido sem qualquer explicação. Depois viera uma carta absurda, com acusações sem sentido, ou talvez demasiado lúcidas, pois Eduardo nunca fora propriamente um modelo de fidelidade. Aliás, mais de uma vez tivera alguns casos com alunas particularmente atraentes e que exibiam os seus dotes na esperança de melhorar a classificação na disciplina – o que mais de uma vez acontecera.
Sempre tivera um fascínio por mulheres mais jovens, principalmente quando eram altas e elegantes. Os jogos de sedução faziam-no sentir-se mais jovem e mais poderoso. Como se a sua autoridade de catedrático aumentasse ao colher a juventude e o prazer dos seus corpos.
Além disso, raramente faltara a um Congresso sobre Faulkner – não que fosse o seu autor favorito, mas porque havia vários anos que sentira uma atracção irreprimível por uma “Faulkneriana” de origem francesa. Ela era uma jovem assistente numa Universidade de Paris, quando se haviam conhecido num Congresso Internacional nos Estados Unidos. Naquela altura, Claire estava a concluir a tese sobre a obra de Faulkner que estudava comparativamente à do uruguaio Juan Carlos Onetti, explorando em ambos a “representação da realidade e da angústia”.
Não era particularmente bela, mas era muito alta, esguia e com uns longos cabelos loiros derramados pelos ombros. Iniciaram uma relação tumultuosa, intensa e apaixonada. Várias vezes, ele chegara a sair de casa, ao sábado de manhã, e apanhar com urgência um avião para Paris, só para passar uma ou duas noites com ela. Necessitava de Claire como da luz, do oxigénio ou do tabaco que lhe alimentava o cachimbo.
À mulher, justificava as ausências com o júri de umas provas académicas, algures, num destino sempre vago e indeterminado.
Saciada a paixão com a urgência de uma ou duas noites intensas, em que o mundo se reduzia a um quarto de hotel e aos dois corpos enlaçados, Eduardo, beijava de leve os lábios de Claire e, exausto, apanhava um táxi para o aeroporto.
Ao seu lar regressava sempre exausto e com pouca paciência. Por isso, no dia em que Fátima o abandonou definitivamente e sem grandes explicações, sentiu-se, primeiro indignado, depois, quase aliviado. Afinal, ela também já passara os quarenta, o fogo da juventude que o havia deslumbrado extinguia-se ano após ano.
Nessa noite, apanhou o avião para o aeroporto de Orly, sem avisar. A seguir, tomou o táxi e chegou ao bairro onde se situava o apartamento de Claire. Nem se preocupou em avisá-la, ou marcar encontro no hotel. Precisava dela e, agora que estava disponível, não precisava de ocultar nada a ninguém. Podiam até talvez casar… Claire já terminara o doutoramento e perspectivava-se-lhe uma carreira auspiciosa.
Aliás, para além do corpo, admirava-lhe igualmente a inteligência: uma mente brilhante, uma criatividade extraordinária, que constantemente lhe invejava. Ele tinha até alguns romances publicados, mas tinha plena consciência de que lhe faltava a chama, aquela centelha que fazia de um ser humano um criador, um artista ou um inventor susceptível de alterar o fluir do curso da Humanidade. Por isso, como romancista estava condenado à mediocridade.
Ele era, ou melhor, fora, um académico na verdadeira acepção da palavra. Possuía um saber literário teórico livresco, fruto de uma cultura adquirida ao longo de muitos anos de dedicado labor. Além disso, nascera num meio aristocrático e intelectual. Tendo ficado órfão com apenas dois anos, fora educado por um avô, juiz e jornalista nos tempos vagos e por uma avó distante e fútil. Pelo palacete antigo que habitavam, passavam os grandes vultos do meio literário da época, envolvidos em tertúlias que se prolongavam até ao raiar da madrugada. Sempre tivera à sua disposição uma excelente biblioteca e era, em suma, um privilegiado. No entanto, faltava-lhe aquela chama que tanto invejava em pessoas como Claire: o rasgo da inteligência brilhante que desemboca num acutilante espírito crítico e numa criatividade sem limites, apanágio dos génios. Por isso, nunca ousara aquele tipo de metamorfose que transforma a crisálida em borboleta. Faltava-lhe o “golpe de asa”…
Por tudo isso, aquela mulher endoidecia-o e desconcertava-o. Sentia-se desarmado na sua presença. Por mais que possuísse o seu corpo, em rubras noites de paixão, não lhe conseguia penetrar na alma, compreendê-la inteiramente, lê-la por dentro. Sentia-se mesquinho, insignificante e, às vezes, revoltado, perante uma imensidão espiritual que não conseguia abarcar.
O que lhe agradava nas mulheres mais jovens e menos habilitadas era precisamente o poder que exercia. O domínio era dele. No entanto, Claire havia atingido o seu nível e ameaçava ainda ultrapassá-lo, fazendo-o sentir-se uma miserável marioneta nas mãos dela.
Naquela tarde, Eduardo comprou um bouquet de rosas vermelhas e subiu até ao quinto andar. Tocou à campainha hesitante. De súbito, apareceu um homem jovem, magro e bastante alto, com a barba por fazer. Pensou que fora engano, mas perguntou se Claire morava ali. O homem convidou-o a entrar e foi chamá-la. Ela apareceu, esplendorosa, envolvida num roupão branco que mal lhe ocultava o ventre proeminente. Entretanto, ouvia-se o murmurar da água a escorrer de um chuveiro.
– Mas… Claire, não nos vemos há oito meses, o que é que isto significa???
– indagou, balbuciante, sem se conseguir refazer do choque.
– Isso pergunto eu, para quê esse bouquet de rosas vermelhas? Não leste o meu e-mail? Que vieste cá fazer?
– E-mail??! Mas oh, Claire, eu não leio e-mails…
– Pois, mas devias modernizar-te. O tempo dos mensageiros e dos sinais de fumo já se evaporou nas brumas da História. Eu avisei-te de que tinha um namorado a sério, informei-te quando soube que estava grávida. Achavas que passaria o tempo inteiro à tua espera? Pendurada a uma vida sem sentido? Ah, e já agora, também deixei o Faulkner, agora trabalho o Vargas Llosa… Não o conheces, também é muito “moderno” para habitar o teu mundo…
Eduardo sentiu que o mundo lhe desabava sobre os ombros. Regressou a Portugal cabisbaixo e profundamente humilhado. Como era possível ter perdido as duas? Parecia que um tornado lhe virara a existência do avesso.
Os anos seguintes foram passados numa profunda solidão, refugiado na sua torre de marfim, de onde só saia para algum almoço em casa dos filhos ou para visitar os netos.
Até que, ao aproximar-se a década dos oitenta, resolvera mudar-se para o Lar”Paraíso dos Maduros Anos”. Ele, que nunca pensara envelhecer, quando se apercebera, já havia virado a “curva da estrada” que dera título a uma obra de Ferreira de Castro. A velhice sempre lhe parecera uma feia coisa, um golpe de espada acutilante no seu orgulho e na sua vaidade. E agora ali estava.
Começou a pensar na população feminina que partilhava aquele espaço: a Rita, a funcionária, uma rapariga jovem e agradável, mas sempre tão triste e desiludida, precocemente envelhecida; aquela senhora que também era catedrática, sempre muito ensimesmada e distante (Matilde, devia ser o seu nome), mas tinha mau feitio, diziam; a outra, viúva do músico… e depois havia aquela pintora, sempre tão vivaça que, a passar a fronteira dos oitenta, tinha mais energia do que as de quarenta, era daquelas para quem a vida era um fruto suculento para ser devorado, saboreado até ao caroço.
Enfim, apesar da idade, talvez ainda se lhe acendesse uma nova paixão, já que o desejo ávido continuava a circular-lhe nas veias, porque tal como escreveu Natália Correia: “um sol em agonia a carne gera / E vai o espasmo ao mais fundo da alma”.
Dora Nunes Gago in A Oeste do Paraíso, Emoody, 2012 (adaptado)
Dora Nunes Gago é professora de Literatura na Universidade de Macau (China), doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas. Foi leitora do Instituto Camões em Montevideu (Uruguai), professora do ensino secundário e investigadora de pós-doutoramento da FCT na Universidade de Aveiro.Publicou:Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005;A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos, artigos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias.
[1] Natália Correia, “Sete motivos do corpo”, O Armistício, 1985