Naquele final dos anos trinta, com os cabos submarinos e a base americana dos hidroaviões, a Horta era um lugar cosmopolita que recebia gente de muitas nações. As companhias estrangeiras( Western Union, Pan American ) movimentavam a Ilha do Faial. Minha avó, uma senhora viúva, queria sossego para as férias de verão da única filha, uma jovenzinha de 11 anos. Resolveu então que iriam se retirar para casa de parentes, na pequena povoação da Terra do Pão, na ilha em frente.
Era ainda escuro quando elas se levantaram. Arrumaram as malas e o cesto com alguns pedaços de carne de vaca salgada, farinha de trigo, açúcar, chá e café, produtos raros no Pico daquele tempo. Saíram das Angustias a pé até o cais da Horta para pegar a Calheta que ia para a Madalena. Mesmo no verão, com mar calmo, atravessar o canal num barco tão frágil como aquele era uma aventura. Temido era quando, por algum capricho da natureza, o mar se encapelava e enfurecido não deixava a embarcação atracar no cais. Nesses momentos trágicos um bote saía da Areia Larga, e corajosamente resgatava os passageiros, desembarcando-os em local mais seguro.
Chegaram a tempo de pegar a Carreira das Malas, uma espécie de ônibus em tamanho pequeno, que fazia com um outro a ligação entre as freguesias. Saltaram na estrada de terra batida e seguiram por uma canada até uma casa de pedra escura, térrea, com uma mureta vazada por uma pequena entrada . A porta da casa era em madeira, rústica, escurecida pelo tempo , e “dava” para um pequeno alpendre. Os tios e primos já esperavam para o jantar, em agitada alegria. Qualquer visita, na solidão daquela ilha, era motivo de festa. Na cozinha enegrecida pelo fumo da lareira, o caldeirão fervia o peixe e a batata. No forno da parede, o bolo de milho recendia. Latão de gordura, talha d’água, alguidar, canecas de barro queimado, alguns talheres e pratos, era todo o aparato da cozinha. Num canto discreto, uma tina redonda em tábuas de madeira esperava a hora do banho.
A sala era muito simples, uma mesa em prancha, uns banquinhos, poucas cadeiras, Uma prateleira enfeitada com paninhos bordados exibia algumas peças de louça branca.O assoalho era em tábua corrida. No quarto, onde elas ficavam, havia uma cama rústica de casal, encimada por um colchão de palha, que afundava no meio com o uso. A colcha era feita em quadradinhos tricotados em lã colorida, que se uniam formando a coberta. Um guarda-fatos, um baú em madeira e uma cadeira compunham o modesto mobiliário. A um canto, uma armação em ferro segurava uma bacia de esmalte decorado. Abaixo dela, uma bilha de água. Sob a cama um bacio, para as urgências noturnas.
No terreno do quintal uma cabrinha garantia o leite do dia a dia. O chiqueiro com dois porcos, um poço, a parreira , uma ameixeira e canteiros de couves tronchudas, batatas, cebolas, alhos, cebolinho e inhames, era toda a riqueza da familia. O resto vinha do mar, ou da ilha em frente, quando não se obtinha , por meio de troca, com o vizinho.
Depois da comida, minha avó sentava-se com os irmãos para atualizar as novidades do Faial. Minha mãe e os primos iam correr as canadinhas em socalcos, procurando o que fazer, pesquisando os quintais, até aos calhaus que se debruçavam sobre o mar. Foi num desses passeios que viram uma frondosa pereira ostentando suculentas peras, convidando-os à tentação . À noite, planejaram roubá-las. Mas mamãe, na escuridão, sem conhecer o terreno, não percebeu que o quintal do vizinho ficava num plano mais baixo, e ao se espichar para pegar as frutas, a pesar dos gritos de alerta dos primos, caiu com estrondo, acordando o vizinho, que desconfiado da intenção da malta, saiu à rua gritando: Xô, larapios, laparosos, raios os partam!
Tudo descoberto, foi, porém, desculpado. Afinal eram só crianças traquinas, que já tinham sido castigadas pela própria terra!
A rotina das férias era a mesma, passeios nas freguesias, pegar amoras no silvado (voltavam sempre todos arranhados), comer frutas dos quintais, pescaria nos calhaus. Os rapazes brincavam de rodar pião, atirar a malha, jogar a trapeira ( bola feita de meia velha recheada de lã). As meninas aprendiam cantigas e faziam roupas para as bonecas de lã. No descanso os homens jogavam cartas ( sueca, truque, burro em pé,…)ou iam para a tasca afogar as mágoas.
Na época das vindimas, as famílias colhiam os figos e as uvas e depois se reuniam nas adegas, galpões em pedras vulcanicas, muito rudimentares, em geral afastados da povoação, onde passavam o dia fazendo o vinho e a aguardente de figo. A comida era feita lá mesmo, em grelhas improvisadas. Tudo acompanhado de muitas talagadas de vinho. À noite voltavam para casa , em bandos, cantando pelas estradas, tontos de tanta oferenda a Baco.
´Foi, porém, numa das noites em que agente se reunia, à luz da lamparina de azeite de baleia, antes de deitar e após as sopas de leite migadas, que meu tio-avô Henrique, caixeiro viajante, chegado de uma das suas viagens, mostrou para a família uma grande novidade: um gramofone.
Entusiasmado, com muito cuidado, colocou a caixa numa cadeira, junto à mureta do alpendre. Montou a corneta, pôs o disco preto no prato, deu a manivela, e devagarzinho pousou a agulha que estava presa ao braço do aparelho. Misto de surpresa e encantamento, numa terra sem luz elétrica e sem água encanada, ouviram pela primeira vez o som gravado. A musica cadenciada , alegre, saltitante, cantada em voz feminina e afinada se espalhou pela redondeza . Curiosos, um a um os vizinhos se aproximaram e, enlevados, sentaram-se nas pedras do caminho ou junto ao muro da casa para ouvir a musica:
…Taí ,
Eu fiz tudo pra você gostar de mim.
Não faça isso comigo não,
Você tem, você tem,
Que me dar seu coração….
Era Carmem Miranda, a portuguesa que encantava o mundo cantando musicas brasileiras, chegando pela primeira vez, em disco, naquela terra esquecida por Deus.
Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 18/05/09
Fotos: acervo da autora