Uma estátua (com resplendor) para Natália Correia
– nota de um quase-diário
Ontem à noite não resisti e atirei-me à leitura da segunda metade de O Botequim da Natália.
À medida que o livro avança e avança a idade da Natália, tudo vai ficando mais sombrio e menos divertido. A atitude adoradora e de desculpa-tudo por parte do autor, Fernando DaCosta, não o impede de uma que outra vez reconhecer aquilo que todos conhecemos na última fase da vida da Natália. Cito dele: “Viajar com a Natália Correia era uma aventura ora apaixonante, ora desesperante, tais os imprevistos, os incidentes, os caprichos, os temores, que a possuíam.” (p. 238) Noutra passagem, porque a Natália não tinha carro de luxo mas exigia um quando a convidavam a ir falar aqui ou ali, conta Dacosta: ”Uma tarde, no Norte, puseram-lhe à disposição um Panda para a transportar para Lisboa. Fez um berreiro medonho só se calando quando um motorista fardado, de boné na mão, lhe abriu a porta de um luxuoso (alugado) Mercedes de casamentos.” (p. 242)
Nas sessenta páginas anteriores, eu não encontrara ainda sinais claros de que Dacosta via ou muito menos se incomodava com certas atitudes da sua adorada deusa. Fiquei deveras boquiaberto com a sua capacidade de aceitação de tudo o que vinha contando. Veja-se este exemplo, que transcrevo por inteiro:
“Necessitando de dar um jantar de cerimónia em sua casa, Natália Correia pediu a criada a uma amiga emprestada (sic). A mulher foi, mas a sua cadela de estimação (a Paloma) embirrou com a intrusa e mordeu-a numa perna com tal fúria que ela teve de ser levada às urgências de S. José.
Aí os médicos quiseram saber se o animal estava vacinado. Contactada pelo telefone, Natália exclamou: “Sei lá, mas que interesse tem isso?”
“É que a rapariga pode correr riscos, se não se souber…”, responderam-lhe.
“E a cadelinha?”, interrompeu Natália. “A cadelinha é que me preocupa, já me inspirou um poema e uma crónica, por sinal muito interessante, agora a criada não, nunca me inspirou nada, nem um verso!” (p. 182)
A transcrição está verbatim. E termina sem o mais leve comentário do hagiógrafo.
O episódio no Porto, aquando do colóquio organizado pela Casa dos Açores do Norte (p. 186), está deficientemente narrado e falta-lhe todo o contexto. O Fernando Dacosta não estava lá. Eu estava. A Natália andava furiosíssima comigo e nem queria ir ao Porto – uma longa estória que um dia hei-de pôr por escrito. Nada a ver com a versão que corre por aí segundo a qual eu lhe teria dado um pontapé. O Eduíno de Jesus foi testemunha de todo o caso, tal como eu aliás fui testemunha do incidente que o envolve a ele, no hotel do Porto, e que Dacosta recebeu distorcido via António Valdemar, que também não estava lá. A Natália exigiu dois quartos e o hotel não tinha mais nenhum disponível além do que estava reservado para a escritora. É verdade que quiseram pôr o Eduíno num outro hotel e o Eduíno sentiu-se (e justamente) ofendido. Fui eu que fui ter com a gerência e disse: O Eduíno não sai daqui. Se sair, sairei eu e mais um grupo de gente. Arranjem para a Natália um segundo quarto onde quiserem, ou então o Dórdio que vá dormir noutro hotel. E o Eduíno ficou, ao contrário do que afirma Dacosta.
Há mais deslizes. Dacosta cita a Natália a prometer-lhe “Havemos de ir à (sic) Terra Nostra” (p. 252), referindo-se ao parque Terra Nostra das Furnas e a que, aliás, chama “bosque” (p. 250). Fala no “culto” dos romeiros (p. 252), quando em S. Miguel é sempre referido como “tradição”, não se tratando propriamente de um culto. Refere o bispo D. Aurélio Granada como “D. Alberto Granado” (p. 258). E diz que “o avião espera na pista de Angra” (p. 257), cidade onde só há porto; o aeroporto fica nas Lajes. Mas há mais (claro que falo dos casos e realidades que conheço): a propósito da viagem da Natália aos EUA, que deu origem ao livro Descobri Que Era Europeia, sobre o qual escrevi um ensaio publicado em Natália Correia, A Festa da Escrita, coordenado pela Maria Fernanda Abreu e mais duas colegas, (Colibri, 2010), que por sinal não consta na lista das fontes consultadas por Dacosta, há no seu livro um episódio narrado em dois parágrafos (p. 184) e banhado de erros grosseiros. Uma estória que se passou em Nova Iorque é contada como tendo ocorrido em Marrocos. Passou-se, de facto, com João Hall Themido, mas ele nessa altura não era embaixador, pois só o foi vinte anos depois, e em Washington. O caso deu-se quando ele era um jovem diplomata e trabalhava no Consulado de Nova Iorque. Além disso, a estória está mal contada e a frase de Natália foi diferente. Para não falar de ter sido mesmo durante essa viagem que ela abandonou o marido americano e não “meses mais tarde”, como no livro vem dito. Mas contei já isso noutro lado (“A autodescoberta de uma europeia na América – ou quando Natália Correia descobriu que era Natália”, pp. 35-51 do acima referido volume).
Por estas e por outras se vê que, se O Botequim da Liberdade consegue de facto retratar a Natália, não é de confiança em termos de factos, dados, pormenores. As citações da sua protagonista são quase todas reproduzidas de cor, recriadas a grande distância. Circula na NET uma série delas sobre os nossos tempos de hoje com o título “Premonições de Natália Correia”. Quando as li pela primeira vez comentei para quem mas enviou: O núcleo duro das ideias é Natália, porém a roupagem já é muito linguagem de Dacosta, toda bem dos nossos dias.
Aliás, o autor avisa numa “Nota final”:
“A linguagem de Natália ganhava espessuras difíceis de apreender por não inciados, pelo que a reproduzimos, por vezes, em discurso indirecto, mais clarificador e descodificador do seu pensamento.” (p. 324).
Um livro cheio de méritos por conseguir pintar a Natália bem ao vivo e viva como ela era. Não se trata de uma biografia, nada a ver com uma obra do género de Antero de Quental. Subsídios para uma biografia que J. Bruno Carreiro exemplarmente escreveu sobre Antero. Também este adorava o seu ídolo, mas era seguríssimo nos factos narrados, sempre escrupulosamente investigados.
Enfim, uma estátua para Natália, do estilo que ela gostaria que alguém lhe fizesse. Porque a diva também detestava factos e ninharias académicas, como sempre o demonstrou nos seus ensaios. Nela as ideias voavam soltas como as pombas, mesmo que fosse a Pomba do Espírito Santo, que ela inventou ser feminina. Se estava na sua cabeça, isso bastava para ser real. Transformava-se em paixão. E, segundo ela, o que o mundo precisava era mesmo de paixão. Essa Natália, ou pelo menos esse lado da estátua, é o que fica captado – e calorosamente – em O Botequim da Liberdade.
Onésimo Teotónio Almeida