Uma outra Açorianidade
— um texto esquecido de Nemésio*
Urbano Bettencourt
Num texto datado de 1975, Vitorino Nemésio referia as circunstâncias em que cerca de quarenta anos antes criara o termo açorianidade: no contexto da leitura de ensaístas espanhóis, entre eles o Pi y Margall de Las Nacionalidades e Unamuno, e por decalque de “hispanidade” e “argentinidad” . A importância desse texto (o último da série de quatro, considerado pelo próprio autor “o mais significativo e denso” e marcado pela presença de alguns sinais de zanga ) deriva não apenas do facto de vir a público desvelar as condições particulares de uma génese, mas igualmente do cuidado posto por Nemésio na explicitação do âmbito e dos contornos do conceito de açorianidade, deixando de parte (mas não em absoluto) algum simbolismo e também “as imagens e o metaforismo” que assinalavam o seu texto de 1932.
Efectivamente, nesse ano, a revista Insula, editada em Ponta Delgada, dedicava o seu número 7-8 (Julho-Agosto) à comemoração do V centenário do descobrimento dos Açores e Nemésio aparecia aí com uma breve colaboração intitulada exactamente “Açorianidade”. Este texto, que assinalava a entrada em circulação do neologismo e mereceria quase de imediato um “desenvolvimento prático” por parte de Luís Ribeiro (com a sequência de artigos publicados em 1936 no Correio dos Açores e mais tarde reunidos em volume ), tem constituído um ponto de referência no âmbito dos estudos nemesianos, em termos do que poderemos entender como um “pensamento insular” (arquipelágico, se quisermos lançar pontes a Edouard Glissant) que por diversos modos e tempos se vai formalmente estabelecendo e, no mesmo passo, enforma boa parte da escrita ficcional do autor .
Ora, acontece que, no decurso da sua investigação da imprensa açoriana da primeira metade do século XX, o Professor Carlos Cordeiro veio a deparar-se com um outro texto de Nemésio também intitulado “Açorianidade”, publicado no Correio dos Açores de 6 de Setembro desse mesmo ano de 1932: tratava-se, afinal, de um artigo transcrito do número especial do Diário de Notícias comemorativo do…. V centenário do descobrimento dos Açores! Este texto, que adiante se republica , suscita alguns comentários, em primeiro lugar sobre as conexões que, entre a derivação e a complementaridade, estabelece com o outro originariamente vindo a lume no número de Insula, lançando luz sobre aspectos não aflorados neste último e com isto também procedendo a uma abordagem sob ângulos diferenciados, a que não serão alheios o contexto de comunicação e os leitores visados.
Se a reincidência no mesmo título não deve ser levada à conta de uma eventual distracção, hipótese que as circunstâncias editoriais e o propósito da colaboração ajudam a afastar, o que transparece dessa repetição terá, então, muito mais a ver com uma manifestação da “impulsividade afirmativa” referida por Nemésio em “Açorianidade” e que o leva a aproveitar a efeméride e as respectivas celebrações para trazer a público uma reflexão sobre a condição insular açoriana, enquanto realidade cujas origens históricas entroncam directamente nos descobrimentos quatrocentistas. Fugindo àquilo que já uma vez referira como “os hinos à terra, no estilo das caravelas e das cruzes de Cristo dos cinzeiros” , Nemésio prefere falar da sua “consciência de ilhéu”, e por isto há-de entender-se o particular modo de ver e sentir o mundo, em íntima relação com a percepção e a vivência do espaço (sintomaticamente, a enunciação singular do eu dará lugar ao colectivo nós). Se é certo que em “Açorianidade” Nemésio põe lado a lado o contributo da história e o da geografia na formação do homem açoriano e da sua mundividência, com a reconhecida afirmação de que “a geografia, para nós, vale outro tanto como a história”, não é menos verdade que aí o autor se ocupa muito mais dos aspectos atinentes ao espaço, à geografia, que ajudaram a moldar e diferenciar esse português de Quatrocentos que deixou a casa histórica peninsular para nunca mais regressar o mesmo (como já escreveu Eduardo Lourenço, que cito de
cor).
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*Publicado em Atlântida, Vol XLVI, 2001, pp323-324, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura.
1. Vitorino Nemésio, “Açores: de onde sopram os ventos” in Açores – actualidade e destino, Comentários de João Afonso, Angra do Heroísmo, Edições Atlântida, 1975.
O livro reúne quatro artigos publicados no Jornal Novo, de Lisboa, em Setembro desse ano, e transcritos em vários jornais açorianos, entre eles o Diário Insular, onde inicialmente saíram os comentários de João Afonso.
2. Alusão ao poema “Corsários à Vista”, de Sapateia Açoriana.
3. Luís Ribeiro, Subsídios para um ensaio sobre a açorianidade, Informação Preambular, Notas e Bibliografia por João Afonso, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 1964.
4. Questionado e re-enquadrado por Onésimo Teotónio Almeida em diversas ocasiões, o conceito de Açorianidade tem revelado a sua validade operatória nos trabalhos de José Martins Garcia, António Manuel B. Machado Pires, Heraldo Gregório da Silva, entre outros
5. Actualizou-se a ortografia e introduziu-se a indicação numérica para distingui-lo do de Insula, que se designará simplesmente por “Açorianidade”.
6. Vitorino Nemésio, “O Açoriano e os Açores”, in Sob os Signos de Agora, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932 (2.ª ed., 1995).
7. A tese nemesiana de “uma estrutura autónoma” e de um homo açorensis sem antepassados, com uma história sem Antiguidade, sem Idade Média, sem Renascença nem humanismo, encontra-se em “Le Mythe de Monsieur Queimado”, texto publicado no Bulletin des Etudes Portugaises et de l’Institut Français au Portugal, tomo VII,Coimbra, décembre, 1940.
Trata-se de uma Conferência proferida em Nice e que merecia uma tradução portuguesa que lhe proporcionasse uma maior divulgação.
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Sobre o Autor, Urbano Bettencourt:
(Manuel Urbano Bettencourt Machado)
Nasceu no Calhau (Piedade), ilha do Pico, em 1949.
Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. É professor Assistente Convidado na Universidade dos Açores,no Departamento Línguas e Literaturas Modernas, onde tem lecionado entre outras, as disciplinas de Introdução aos Estudos Literários, Literatura Portuguesa, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa e Literatura Açoriana.
Tem dedicado particular atenção às literaturas insulares, tendo já proferido conferências a propósito nos Açores, em Cabo Verde, Madeira e Canárias.
Colaborador da imprensa desde muito jovem, ficou ligado ao suplemento “Glacial”, de A União, e que constituiria a matriz referencial de um grupo de escritores açorianos revelados nos finais dos anos 60, princípios dos anos 70; naquele jornal terceirense viria a alargar a sua participação através dos suplementos “Juvenil” e “Cartaz”, entre 1972 e 1974, altura em que cumpria serviço militar obrigatório na Guiné.
No final dos anos 70 dirigiu, juntamente com o poeta J. H. Santos Barros, A Memória da Água-Viva (revista de cultura açoriana) durante a sua fase de publicação em Lisboa.
Tem colaboração dispersa pela imprensa, rádio e televisão; para esta última trabalhou com o realizador José Medeiros na feitura do documentário Djutta Ben-David: voz & a
lma e na adaptação do romance Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio.
Poesia e narrativas:
Raiz de Mágoa (Setúbal, 1972); Ilhas (de parceria com J. H. Santos Barros; Lisboa, 1976); Marinheiro com Residência Fixa (Lisboa, Grupo de Intervenção Cultural Açoriano, 1980); Naufrágios inscrições (Ponta Delgada, Signo, 1987); Algumas das Cidades (Angra do Heroísmo, IAC, 1995); Lugares, Sombras e Afectos (desenhos de Seixas Peixoto; Figueira da Foz, Ed. dos autores, 2005); Santo Amaro sobre o mar (desenhos de Alberto Péssimo; Porto, Editorial Moura Pinto, 2005 e 2009,2ªedição).
Ensaio:
O Gosto das Palavras (Angra do Heroísmo, SREC,1983); Emigração e Literatura (Horta, Câmara Municipal, 1989); O Gosto das Palavras II (Ponta Delgada, Jornal de Cultura, 1995); De Cabo Verde aos Açores – à luz da “Claridade” (Mindelo-Cabo Verde, Câmara Municipal, 1998); O Gosto das Palavras III (Lisboa, Ed. Salamandra, 1999); Ilhas conforme as circunstâncias (Lisboa, Ed. Salamandra, 2003).