A história, essa, estava destinada a “Açorianidade [II]”, onde constitui o núcleo central do discurso, numa espécie de lição expressamente dirigida ao público continental, daí a particular insistência de Nemésio nos diferentes modos e vicissitudes do relacionamento histórico entre Portugal e o território insular. Distanciação, desinteresse, esquecimento — poderão ser termos para designar a realidade dessa relação e que, pelas suas consequências, explicarão em parte o fenómeno da emigração e o seu papel estruturador da sociedade açoriana; neste campo, a interpretação de Nemésio parece-me um pouco benigna, pois deixa fora de consideração questões de sobrevivência e factores de natureza económica que se situarão na base da fuga açoriana para o Brasil ainda no séc. XIX, em condições tão desumanas e trágicas que só muito remotamente a simples “sedução do mar envolvente” poderia levar a enfrentar (isto sem esquecer, todavia, que Nemésio será o autor açoriano em que mais repercute, literariamente, a emigração para o Brasil).
Num outro domínio de anotações, convém salientar que em “Açorianidade [II]” Antero volta a ser apresentado como o exemplo da inquietação insular (e repare-se como, através da inquietação, subtilmente o texto reafirma a íntima ligação entre espaço e homem), tal como já acontecera em “O Açoriano e os Açores” e mesmo em “Le Mythe de Monsieur Queimado”, em que Antero passa por ser o único europeu nascido no espaço tão longínquo e deserdado dos Açores (Monsieur Queimado considera-o, porém, “um açoriano infiel”). E, se quisermos entrar pelas ironias da história, não podemos deixar de confrontar o desejo aqui expresso de “uma estação naval e aérea” para os Açores com o que cerca de vinte anos mais tarde o próprio Nemésio escreverá sobre a Base das Lajes em Corsário das Ilhas ou então em Festa Redonda, onde aquilo que era sonho em 1932 se transformou em lamentação e quase pesadelo nas vozes líricas das “Cantigas ao Campo das Lajes”.
Complementando o outro texto do mesmo ano e com idêntico título, “Açorianidade [II]” vem ainda alargar o corpus daqueles textos (citados ao longo desta nota) em que Nemésio formula, através de aproximações sucessivas, o seu pensamento insular. Eles exigiriam talvez, para melhor clarificação, um estudo de conjunto que detectasse e sistematizasse as suas linhas de força fundamentais e, numa fase posterior de articulação, permitisse equacionar as relações existentes entre esse campo teórico e a ficção narrativa de Nemésio (já noutro lado referi a existência de algumas ligações, não perigosas, entre “Le Mythe de Monsieur Queimado” e Mau Tempo no Canal).
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Em momento de conclusão, apetece voltar de novo a Nemésio: “Há-de haver sempre na nossa vida de ilhéus uma mágoa abafada: não podermos gritar aos outros que a nossa singularidade não é dessas, das que desonram pela estultícia, mas a singularidade do isolamento, a reposição do homem no indivíduo e no adâmico, o Jardim das Oliveiras com um mísero e pobre suor” . Apesar da persistente actualidade da citação (ou talvez por causa dela), esta seria decerto uma nota demasiado melancólica para entoar em tempo de centenário; acrescento-lhe por isso uma outra, colhida em Sapateia Açoriana, não como forma de negação, mas mais em jeito de suplemento de optimismo: “a minha vida está velha/ mas eu sou novo até aos dentes”.
Abril/2001
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