Uma suave “polémica” de há quase cinquenta anos*
Já contei nas páginas deste jornal como foi que me candidatei a colaborador, quando ele ainda dava pelo nome de Açores e eu, seu apaixonado leitor diário, era jovem quase imberbe. Pedem-me agora que volte a participar em mais uma edição de aniversário, e vou revirar os ficheiros da memória para de lá retirar elementos adicionais.
Estava-se nos anos sessenta e em Ponta Delgada o jornal aguerrido era o Açores – de Cícero Medeiros e Manuel Jacinto de Andrade – que, anos mais tarde, veio a desaparecer para dar vida ao então decrépito, quase a desfalecer de longevidade, o Açoriano Oriental. No artigo de há nove anos, que depois incluí no meu Livro-me do Desassossego, contei como, numas férias de Verão, arribado do Seminário de Angra cheio de entusiasmos adolescentes (em Angra respirava-se bem melhor que em Ponta Delgada os novos ares do Concílio Vaticano II), lhes fui bater à porta, na velha rua de Sant’Ana, a perguntar se aceitavam uma colaboraçãozita regular. Sentaram-me e puseram-se a conversar amavelmente comigo, acabando tudo em ameno cavaqueio e acordo franco de páginas abertas para enviar o que bem entendesse. Estava-se agora em 1966, dezanove anos na pele.
Por leviandade juvenil, o primeiro artigo que publiquei foi sobre, nem mais nem menos, … o evolucionismo – “Evolucionismo integral?” era o título. Nas aulas de Antropologia Filosófica tínhamos aprendido sobre essa questão e eu, levado sempre pela enorme vontade de partilhar o que me era revelado, não me contive com aquelas aprendizagem sobre a origem do ser humano. O jornal gostava de provocar, agitar as águas do marasmo local, por isso terá pespegado o meu escrito em artigo de fundo, como então se chamava ao texto que figurava ao alto à esquerda, na primeira página. Avanço, porém, que foi deliberada da minha parte a escolha do tema, pois – concedo – não me faltava intenção de atiçar os leitores. E consegui. À Redacção chegou logo uma resposta assinada por Augusto de Vera Cruz, pseudónimo de alguém já colaborador do jornal. O seu artigo saiu também em fundo. Muito correcto na discordância ou, pelo menos, nas objecções; ainda hoje de vez em quando refiro a finura desse escrito em termos de lisura, para demonstrar que é possível discordar-se de ideias sem desrespeitar quem as defende.
Há tempos, através de um amigo, consegui da Biblioteca Nacional de Lisboa cópia dessa “polémica”, que terminou com o meu artigo seguinte, intitulado “Papai macaco?”. Tenho tudo arquivado, algures num dossier cujo paradeiro, no momento da escrita destas linhas, não consigo descortinar. Apenas consegui reaver, de novo através do mesmo amigo, a resposta de Augusto de Vera Cruz, que abre com esta limpeza de trato:
Há algum tempo que não aparecemos com as nossas “Prosas Rústicas” [era assim que se intitulava a sua rubrica]. Não que tenhamos desistido de maçar o leitor com elas, mas um pouco mais de trabalho a anteceder umas desejadas férias fez-nos demorar a continuação da série. E hoje, que pudemos voltar a escrever, mudamos de ideia quanto ao assunto que primeiramente imagináramos para ser aqui tratado. Fica para outra ocasião e aí vai este inspirado em um artigo, que apareceu há dias neste mesmo jornal sob o título “EVOLUCIONISMO INTEGRAL?” Mas, antes de tudo, um esclarecimento: não nos propomos atacar a teoria apresentada, tanto mais que ela não é da autoria do articulista e não temos felizmente o costume, que já vai sendo triste hábito na nossa Imprensa, de criticar qualquer camarada que para ela escreva.
E, depois deste pequeno prólogo, entraremos no assunto de hoje propriamente dito. Claro que, como acontece com quase toda a gente, nos “arripiámos” quando, já lá vão alguns anos, tomámos conhecimento da teoria evolucionista sobre a origem e formação das espécies. O nosso primeiro pensamento terá sido o de a julgarmos condenável por ser aparentemente anti-religiosa. Mas, depois de considerarmos que a Deus nada é impossível, concluímos ser esta tão aceitável como a fixista de Lineu, ou mais. Procurámos enão ser juiz deste e de Darwin, reconhecendo embora a nossa modéstia perante os seus altíssimos conhecimentos. (Açores, 23 de Julho de 1966)
Basta de citação por agora. Não é este o lugar para se revisitar o conteúdo desta troca que nada traz de novo, sobretudo se nos lembrarmos que três quartos de século antes de nós, na mesma cidade de Ponta Delgada, o nosso patrício Arruda Furtado havia ido muito mais longe, publicando em edição de autor o seu magnífico opúsculo O Homem e o Macaco em resposta ao sermão de um padre continental que numa pregação se insurgira contra Darwin. Aqui basta apenas acentuar duas notas: a primeira realçando o ambiente profundamente conservador e repressivo que se vivia em Ponta Delgada nesses anos. (Fica para outra ocasião a polémica que mantive com um clérigo, por eu ter defendido a não obrigatoriedade de a mulher usar o véu na igreja, que mereceu um artigo da autoria do dito reverendo em parangonas na primeira página do jornal – dessa vez era no Corrreio dos Açores – a rebater-me com veemência. A minha resposta foi proibida.) As gerações pós-25 de Abril não fazem ideia do autoritarismo em que se vivia.
A outra nota evoca a memória do interlocutor da minha primeira “polémica” jornalística. Augusto de Vera Cruz, vim a saber logo depois, era um professor de instrução primária numa freguesia de S. Miguel. Não nos conhecíamos mas, a partir daí, Manuel Jacinto de Andrade apresentou-nos e começámos a cartear-nos porque não tínhamos telefone e o correio postal era o meio normal de comunicação, até porque em pouco tempo as férias terminaram e eu regressei ao Seminário de Angra. Por sinal, Augusto de Vera Cruz também deixou S. Miguel algum tempo depois e rumou a Espanha a fim de frequentar uma Congregação Missionária dos Combonianos em Valência, de onde continuou a enviar colaboração para o Açores. Os nossos encontros, então praticamente epistolares, geraram uma amizade duradoura que se intensificou durante ambas as nossas vidas. Nunca esquecerei uma carta de apoio que me enviou quando, após a aquisição do jornal pelo Visconde de Botelho, fui saneado da lista dos colaboradores. Mas esse foi apenas um dos muitos gestos de amizade que Augusto de Vera Cruz teve para comigo ao longo de décadas.
Vou quedar-me por estas linhas, ao menos por agora. Calculo que os leitores aqui chegados já descobriram ser a Maia a terra de onde escrevia o meu interlocutor, cujo nome era, nada mais nada menos, do que Daniel de Sá, de saudosa memória.
Onésimo Teotónio Almeida
Texto publicado no Jornal Açoriano Oriental, em edição comemorativa aos 179 anos de fundação do mais antigo jornal de Portugal.