V É R T I C E
Para além disso, as horas mudaram, e as livrarias também.
Recusei ir a banhos, a meio da tarde, preferindo o interior da casa antiga.
A alegria bárbara do mar distraiu-me da leitura do primeiro livro
A sombra roxa da latada distraiu-me da leitura do segundo livro
A espada de luz sobre as páginas distraiu-me da leitura do terceiro livro
Fui buscar o quarto livro já descalço pelo sobrado
Folheei o quinto livro dentro do armário com vidros e cortinas amareladas
Trouxe o sexto livro para a mesa passada, vamos dizer, uma hora
Fui buscar o sétimo livro por razões simbólicas e de linguagem.
À noite, no terraço, mostrei o esboço do poema:
“Vinte minutos são precisos para cozer arroz
Vinte minutos levam os cães a comer
Vinte minutos demoram as horas da Liturgia
A cor do mar define o seu peso em relação ao céu
A natureza do seu elemento; já as canas cortadas aos pés da vides
Revelam uma vontade.”
– A sério!, repetia, sem parar, pondo as mãos entre a cabeça e a cadeira de lona:
A poesia é para aristocratas, como se fosses um príncipe russo exilado
Nada para este tempo, a sério! É uma questão política, a sério!
A janela para a biblioteca continuava aberta. Vi entrar um besouro
Mas o que me pareceu foi o pato que forma o vértice do voo para o sul.
Casa das Tramoias, Terça-feira da segunda semana da Quaresma de 2012 (6 de Março)
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores é professor no liceu de Angra. É Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2008). Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu último livro de ficção (O Acidente, Porto: Campo das Letras) ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.