Mário T Cabral, 04 de Outubro AD 2015
Lydia Davis é uma escritora americana atual muito conceituada, traduzida na Relógio d’Água em dois livros de contos: Não Posso nem Quero e Contos Completos. É leitura altamente recomendável.
Costuma ser apresentada como escritora de escritores, o que talvez queira dizer que trabalha a literatura como arte, e não como divertimento, desimportada com o gosto das massas, apostada em experimentar novos caminhos para a expressão escrita.
Este atrevido desprendimento da popularidade dá-lhe um ar “upper class” que relembra a era dos génios. Há muito tempo que não se via disso, principalmente na América, onde a prosa regrediu, em comparação com o modernismo, levada numa onda de confusões pseudodemocráticas e lógica de mercado. Quer uma coisa quer a outra empobrecem a exigência da Grande Arte.
Não se fique, porém, com a ideia de que é ilegível. Até poderia ser uma espécie de Joyce, mas não é. Um leitor comum está apto a entrar nos textos dela, embora estranhe, talvez, a escolha dos temas e o refinado gosto e erudição com que são tratados. Mas é uma questão de vício, como quem está habituado a comer “fast food” e prova gourmet.
Alguns dos contos embaraçam, por serem muito pequenos (duas linhas, por exemplo), não terem personagens, nem ação, nem outras características narrativas. Serão, na verdade, contos? Não serão, antes, apontamentos para contos? Não haverá alguma preguiça na brevidade de algumas peças? Alguns não serão simples anedotas? Serão poesia?
Não é, pois, uma autora que passe sem discussão. Seja como for, algumas peças são a todos os níveis notáveis, para não dizer geniais, que talvez seja excessivo. Veja-se o caso de “As Vacas” (pp. 120-133 da edição portuguesa — “Carta a uma Empresa de Caramelos de Menta” também é inesquecível, entre outros textos).
A maior qualidade de Lydia Davis é a objetividade, isto é: é um olhar virado para o exterior, não para o interior, para o mundo, não para a alma humana. Se é certo que a condição humana é tema sem par, também é verdade que já não se aguenta com a psicologice delicodoce da literatura que se faz nos últimos tempos. É como um doce: há deles que, estando abaixo do céu, devem ser provados com extrema moderação, com o risco de se tornarem enjoativos. É muito fácil o escritor cair nos lugares comuns nauseabundos das telenovelas.
Neste conto, a autora descreve três vacas que pastam em frente à casa dela. São pequenos parágrafos separados que relatam: a posição das vacas no terreno; a fisionomia das vacas; as vacas vistas a diversas horas do dia e da noite e em várias estações do ano, etc.
É uma observação objetiva do mundo exterior, com proposições com valor de verdade e afirmações analógicas muito prováveis. Há aproximações aos relatórios científicos e, alguns fragmentos, têm alto valor filosófico, a lembrar muito o estilo de Wittgenstein. Recorda-se, ainda mais, Francis Ponge, que a autora, que traduz Flaubert e outros franceses, conhece, com certeza.
É frequente encontrarmos pintores com este tipo de preocupação, escolhendo um tema que pintam obsessivamente, haja em vista Cézanne e O Monte de Saint-Victoire. As variações também são comuns na música (a escritora começou por estudar piano). Na literatura esta prática não é comum e, por isso, esta aproximação às outras artes é, de facto, fresca, atraente, original, inspiradora.
O discurso literário deve ambicionar arrebatar o pódium da verdade, que agora está mal entregue à ciência. Prédicas como “As Vacas” são belíssimos exemplos demonstrativos de como apenas a literatura consegue respeitar o encontro do ser humano com a realidade.
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores, é Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu livro de ficção, O Acidente, ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.