Vamberto Freitas – cruzando e alargando fronteiras
Quem segue mais ou menos de perto a vida cultural açoriana conhece a intervenção de Vamberto Freitas e a sua presença regular e actuante, atento ao que de literário se vai produzindo no pequeno-imenso universo insular. Este “pequeno-imenso” não é paradoxo fácil nem grácil, mas uma alusão ao facto de um arquipélago com menos de um quarto de milhão de habitantes persistir e insistir no cultivo de uma dominante histórica sua, a da publicação de livros. O “pequeno-imenso” tem ainda outra vertente. É que, cada vez menos, os Açores são o espaço geográfico limitado pelas águas atlânticas, pois alargam-se sobretudo para o continente norte-americano, desde os Estados Unidos e Canadá até ao Brasil, além de que desde sempre se estenderam a Portugal Continental, para lá remetendo gente sua que por regra escreveu pensando as e nas suas ilhas. É também do domínio comum que Vamberto Freitas é um produto e exemplo desse alargamento do território cultural açoriano, que ele próprio tem ajudado a construir, quanto mais não seja por procurar torná-lo conscientemente presente no imaginário insular. Tendo vivido 27 anos na Califórnia e regressado aos Açores em 1991, nunca mais se esqueceu dessa dimensão alargada que as ilhas hoje têm e que imensamente as expandiu. Ao longo de um quartel, Vamberto tem mantido altamente activo o seu radar, pouco escapando à sua sensibilidade de leitor e crítico. A sua mais de dezena de livros publicados está aí a demonstrar à saciedade quanta leitura, quanto labor, quanto entusiasmo, quanta sagacidade vão na mente e na pena deste crítico, cujo fôlego e garra ressaltam logo que, ao acaso, se abra qualquer das obras de sua autoria.
Depois de onze volumes de recolhas de actividade crítica, surge agora o décimo segundo intitulado BorderCrossings. Leituras transatlânticas (Ponta Delgada: Terras Lavadas, 2012), 300 páginas de informação reflectindo uma crescente coerência em termos teóricos, bem como de visão do mundo e da literatura. Vamberto tem acerca da literatura uma visão dinâmica, de verdadeiro fã. Adora uma boa obra literária, vibra ao lê-la, e depois sente-se impelido a arrastar os amigos (os leitores para ele são uma cadeia de amigos), procurando convencê-los a atirarem-se também à leitura com o entusiasmo que ele pôs na sua, compulsiva e contagiante se um livro para ele o é.
Este último volume navega, como as leituras do crítico, nos mares privilegiados de entre continentes. De periscópio em punho, a partir de uma ilha do Atlântico – S. Miguel – vai atentamente detectando o que se publica tanto na lusa-América como no outro lado, no velho Rectângulo, onde também vivem tantos açorianos. Escrevi ‘lusa-América”, sem precedê-la de ‘Norte’, porque o Brasil tem aqui uma presença igualmente significativa – Luiz António Assis Brasil, Lélia Nunes e Cecília Meireles, entre outros – que inclui até obras de John dos Passos e John Updike, cada qual sobre o seu Brasil. Porque é fundamentalmente sobre a escrita de matriz açoriana que incide o seu olhar, se bem que longe de em exclusivo. Alguns dos autores serão já hoje nomes mais ou menos familiares ao leitor de radar mais abrangente, outros nem tanto, e ainda sobre outros, bem apesar da sua qualidade, poucos terão vislumbres da sua existência. Tudo gente do imenso network insular, quer vivam na Califórnia, Canadá, Brasil, ou Lisboa: Fernando Aires, Frank Gaspar, Urbano Bettencourt, Antero, Julian Silva, Daniel de Sá, Victor Rui Dores, Darrell Kastin, Alfredo de Mesquita, Álamo Oliveira, Anthony De Sá, Emily Daniels, José Francisco Costa, Paula de Sousa Lima, José Medeiros Ferreira, J. H. Santos Barros, Vasco Pereira da Costa, Angela Dutra Menezes, João Brum, Millicent Borges Accardi, Francisco Cota Fagundes, Katherine Vaz, Diniz Borges, Manuel Pereira Medeiros, Joel Neto, alargado entretanto ainda a outra gente que habita, ou pelo menos frequenta, esse universo – José Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena, Paulo da Costa, Eugénio Lisboa, Urbino de San-Payo, Nancy T. Baden, John Kinsella, Gregory Rabassa e o ever present Edmund Wilson – o grande tema da tese que Vamberto nunca escreveu em volume académico mas anda sempre escrevendo em recensões espalhadas por aqui e por ali temporariamente reunindo-as em volume, como agora.
Vasto mundo, nosso mundo este, deslocado do epicentro de Lisboa para uma ilha do meio do Atlântico escapando ao paradigma tradicional, e com referentes distintos, provenientes do inevitável contágio americano. Não é impunemente que se regressa às ilhas para ir leccionar na Universidade dos Açores, nem se pode despejar essa carga sobre o mar. Vamberto fixou-se, em verdade, no meio do rio Atlântico, a grande (e creio que mais singular) deslocação do eixo central das letras pátrias. Não pretende ser uma jangada de basalto a emigrar para as Américas, tanto assim que de lá regressou. Mas fê-lo de portas e janelas abertas para horizontes que só enriquecem o poroso, osmótico universo luso – como uma simples viagem pelos nomes atrás mencionados deixa entrever. A pátria só beneficia com isso. E deveria agradecer.