Vamberto Freitas
Professor universitário, intelectual, ensaísta, crítico literário e cultural, cronista e tradutor, o meu convidado de hoje é sinónimo de vocação ensaística cultivada com paixão, e de crítica literária séria e generosamente partilhada. É um autor que possui sensibilidade estética e capacidade criativa, está bem apetrechado em termos teóricos, com capacidade de informar, esclarecer, decifrar e avaliar, sabendo incorporar nos seus discursos culturais os métodos e as preocupações dos mais diversos ramos da ensaística e da investigação literária.
São décadas de labor estatístico que fazem dele um dos melhores estudiosos da literatura norte-americana e de expressão açoriana. Eu vou estar aqui à conversa com o terceirense Vamberto Freitas.
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Victor Rui Dores – Bem-vindo ao programa, Vamberto Freitas. Tenho muito gosto em ter-te hoje aqui comigo. O crítico literário é uma espécie em vias de extinção?
Vamberto Freitas – Não. Só provavelmente irrelevantes num contexto de bancos criminosos, dinheiro e preocupações afins de uma estúpida e odiosa classe dominante, sem valores, sem dignidade, e muito menos sem sensibilidade para o tudo o resto que nos faz seres humanos merecedores da vida.
VRD – És reconhecidamente um ensaísta de primeira grandeza. Em jornais, em livros e em fóruns de debate, estudas autores de ambos os lados do Atlântico, de forma contínua e continuada. Posso saber quantos livros, em média, lês por mês?
VF – Depende. Mas na generalidade são quatro livros. Há semanas que leio menos, outras ainda mais. Durante as férias de verão reentro sempre no Açoriano Oriental (e agora no jornal “I” e semanário “SOL”) com cinco ou seis textos já em carteira. Isso permite-me uma certa folga.
VRD – O que é para ti um bom livro?
VF – Para mim literatura e sociedade são indissociáveis. O bom livro será uma representação artística ou uma poetização do seu lugar e tempo, ou então ainda um ensaio ou ensaios de fôlego que nos reinterpretam esse mesmo tempo e lugar, que pode ser a nossa rua ou o mundo inteiro.
VRD – Só escreves sobre os livros de que gostas incondicionalmente?
VF – Sim. A determinada altura, aqui há uns anos, decidi que a vida era curta demais e o mundo (incluindo naturalmente os países de língua portuguesa), está cheio de grandes livros, de grande literatura. O resto não traz mal nenhum a ninguém, mas não lhes presto atenção. É claro que não tenho tempo de escrever sobre muitos livros bons, e que me são referências essenciais.
VRD – Nasceste nas Fontinhas, ilha Terceira e, em 1964, com 13 anos de idade, emigraste com a tua família para os Estados Unidos da América. Na California State University, em Fullerton, completaste a tua licenciatura em Estudos Latino-Americanos e uma especialização em Inglês. Leccionaste línguas e literaturas no ensino secundário norte-americano, ao mesmo tempo que desenvolvias profícua atividade nos jornais da comunidade, na rádio portuguesa, na organização de congressos estaduais sobre o ensino bilingue e sobre a problemática da imigração. Durante largos anos foste correspondente e colaborador do suplemento literário do Diário de Notícias (Lisboa). Diz-me uma coisa: onde é que, neste filme, surge, na tua vida, o incontornável Onésimo Teotónio Almeida?
VF – A meados dos anos 70, num congresso sobre a educação luso-americana na Califórnia. Creio que foi o último em que participou Jorge de Sena, em 1978. Um dos meus primeiros textos críticos publicados em Portugal foi precisamente sobre o Ah! Mònim Dum Corisco, do Onésimo, e saiu na extinta revista A Memória da Água-Viva, então coordenada e dirigida pelo Urbano Bettencourt e pelo J. H. Santos Barros. Onésimo foi e será sempre, a partir desse momento, para além de um queridíssimo amigo, uma das minhas maiores influências e referências intelectuais.
VRD – Com quem mais fizeste a tua recruta literária? Que autores te marcaram e influenciaram no campo da ensaística?
VF – Em primeiro lugar, o grande Edmund Wilson. Depois George Monteiro e a minha antiga e falecida professora e mentora Nancy T. Baden. Mais tarde, os portugueses João Gaspar Simões, Eduardo Lourenço, Teresa Martins Marques e, nos últimos anos, o professor e ensaísta João Barrento. Noutro registo estritamente literário, Eugénio Lisboa. Entre uns tantos outros, evidentemente.
VRD – Por amor a uma mulher, chamada Adelaide Freitas, regressas aos Açores, fixas residência na ilha de São Miguel, onde és, desde 1991, Leitor de Língua Inglesa na Universidade dos Açores. Entre 1995 e 2000 desenvolveste, a par de outras actividades, papel de grande relevo no suplementarismo cultural, pois criaste e coordenaste o SAC, Suplemento Açoriano de Cultura, no jornal Correio dos Açores, projecto que te permitiu estudar o imaginário dos escritores açorianos e contribuiu, decisivamente, para dar a conhecer a força da afirmação cultural açoriana. Nunca te arrependeste de ter regressado às ilhas?
VF – Nunca. Não trocaria as minhas ilhas açorianas por nenhum outro lugar no mundo. Desde o início aqui em São Miguel tive provas de amizade e afectos que nunca tinha tido em mais lugar algum por onde passei e vivi.
VRD – Com o boom das novas tecnologias da comunicação e da informação, os jornais deixaram de ter suplementos culturais e espaços de referência para a crítica literária. Entre nós, a excepção vai para o jornal Açoriano Oriental, onde manténs uma coluna literária e cultural, borderCrossings: leituras transatlânticas de que resultaram estes 3 volumes; e é também no Açoriano Oriental onde, juntamente com o Álamo de Oliveira, manténs a página literária “Artes & Letras”. É um trabalho que… não te paga a renda da casa…
VF – Não. Mas é uma obrigação minha contribuir para os arquivos criativos e literários da minha terra, e do meu país no seu todo. Recebo um ordenado como docente universitário que paga a minha existência como professor e ensaísta.
VRD – Continuemos a lançar alguns olhares sobre os teus restantes livros.
VF – São esse meu tal contributo ao registo literário, e não só, do meu tempo e dos lugares por onde passei e vivi. Resta a outros avaliar o seu valor. Posso dizer-te que até hoje só tenho razões para sentir gratidão pelo que sobre o meu trabalho têm escrito alguns outros no meu país, nos Estados Unidos e no Brasil.
VRD – Vivemos um tempo em que o gosto literário vai dando espaço à moda literária. Passaram agora ao ataque os “repórteres culturais” que formam lobbies na grande imprensa e são aspirantes a gestores de opinião. Geralmente pertencem ao jet set literário da capital, e é óbvio que não fazem apreciação estética, limitam-se a escrever notas de leitura… Ou seja, estão preocupados com tudo, menos com intrínsecos critérios de qualidade das obras analisadas. Mas há pior: refiro-me a uma certa crítica académica, pouco ou nada acessível ao leitor comum, enrolada em hermenêuticas e que vai morrendo a falar sozinha… Ora, tu não vais por aí e não te encaixas nestas duas tendências, e quero louvar-te por isso. E depois escreves num português vivíssimo, em estilo limpo, de grande finura lexical, e com uma muito bem conseguida articulação de ideias. Foi a tua formação anglo-americana que te fez ser assim?
VF – Não só, mas estou em crer que foi a minha formação americana que mais me influenciou, em primeiro plano, em tudo o que faço na escrita.
VRD – Nunca te deu para experimentar a ficção narrativa? Não é obviamente o teu caso, mas há quem diga que os críticos literários são romancistas frustrados…
VF – Não, não sou um romancista frustrado. Só frustrado.
VRD – O reconhecimento público do teu trabalho está no facto de a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores te ter conferido, em 2015, a Insígnia Autonómica de Mérito Profissional. E agora, Vamberto?
VF – Agora vou continuar a trabalhar ainda com mais energia e respeito na divulgação crítica da nossa cultura e tradição literária. Sinto-me muito honrado, muito grato, por os representantes máximos do nosso povo na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, os representantes da nossa sociedade democrática, terem reconhecido o meu trabalho. Acredite-me, um gesto oficial destes vindo de casa vale por tudo o resto.
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*Este diálogo com Victor Rui Dores destina-se ao programa “Conversas Açorianas”, a ser transmitido pela RTP/Açores. O que então disse em directo e está gravado poderá não coincidir com algumas das minhas respostas aqui, mas estas são por certo um complemento que acho legítimo.