VARIAÇÕES
Mário T Cabral, 02 de Novembro AD 2014
A originalidade não é possível a não ser a partir de um quadro prévio de referências culturais, isto tanto para o criador quanto para o crítico. Uma obra relaciona-se sempre com a tradição, seja de modo consciente ou inconsciente, afirmativo ou negativo. O seu valor pode depender: ou da forma exímia com que se tratou as regras, exemplificando o cânone a um ponto inesperado; ou “deformando” o código, com razões ou sem elas.
O mais frequente é a repetição de um formato preestabelecido, tal e qual como nos jogos: não se espera que um jogador de futebol invente regras particulares para brilhar. Porque é que há de parecer mal que se avalie uma obra de arte com base no domínio das técnicas, dos materiais e dos códigos comuns? Este é um tipo de teste sério e justo, que não pode abandonar o mundo artístico, com o risco de aceitarmos peças que não valem um tostão e rejeitarmos obras-primas. Grandes pintores, poetas, músicos, etc., criaram obras imortais respeitando o cânone vigente; e grande parte do prazer causado por estas obras deriva do reconhecimento de serem variações sobre um tema tradicional.
Ao contrário do que se possa pensar, é esta “classificação académica” que permite o reconhecimento da “deformação aceitável” do cânone, seja ela consciente ou inconsciente, mas sempre distinta da “deformação ilegítima” do cânone. Um artista pode ser original contra vontade; pode estar convencido de estar a seguir à risca o cânone… embora os outros compreendam a diferença da sua “mão”. Isto nada tem a ver com a inaptidão daqueles que não cumprem as regras simplesmente porque não sabem. Quanto a pôr conscientemente em causa o cânone, com argumentos sólidos, válidos e bons, é o que mais há no Ocidente. Mas é importante distinguir entre a guerra justa e terrorismo.
Não é fácil. Quase sempre a má obra é mesmo má, quer dizer: usa critérios morais e políticos, em vez de estéticos. Exemplo: muito teatro contemporâneo é uma provocação dos costumes (se há costumes ainda para provocar), procurando nesta agressividade moral gratuita o interesse estético, que é praticamente nulo. Antes fossem menos palavrosos e mais arrojados na forma significante. É frequente os artistas de génio serem conservadores, em termos sociais. Revolucionam o cânone com seriedade estética absoluta, demonstrando grande respeito pela tradição. Amam o passado da sua arte e estão convictos de o estar a projetar no futuro, através das suas obras. E estão! Ao contrário, o embusteiro é um oportunista vaidoso, amigo das anedotas artísticas, que se faz de “enfant terrible” por vanglória. É quase certo não perceber nada de nada, enganando tolos. O pior é que os tolos são mais que muitos.
Pode um artista mudar de quadro de referências culturais? Sim, pode, mas é raro. Beckett escreveu em Francês, mas o lastro cultural é o mesmo europeu. Temos alguns casos de paixão pelo orientalismo, por exemplo. É raro porque tal implica uma experiência íntima doutra cultura, o que não é nada, mas mesmo nada fácil. É caso para perguntar se um artista que se põe a criar a partir de um cânone estrangeiro chegará, algum dia, ao ponto da revolução criativa. O mais de esperar é que seja muito bem comportadinho dentro dos novos parâmetros. Supondo que mudou de código para ser original… saiu-lhe o tiro pela culatra.
Ser original significa “”ir à origem”, “compreender a essência”. É, por isso, fundamental estudar a fundo a tradição, se se quiser ser novo. Atorar a raiz, como o faz o desconstrutivismo atual, é haraquiri.
Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.